De imediato, basorexia é um termo que me lembra de uma palavra que eu ouvia vez por outra nos meus tempos de infância em Madrid, onde nasci. “Basura”, que simplesmente em espanhol significa lixo. Vamos combinar que a princípio, ao menos, basorexia não sugere nenhum detrito, nada fétido ou escatológico por exagero. Pois estamos falando do desejo, da compulsão mesmo irrefreável de beijar. Beijar muito. Beijar enlouquecidamente. Beijar sem parar.
Antes de tudo, vamos decifrar a foto acima cuja fama atravessa os tempos. Publicada na revista americana “Life”, foi tirada por Alfred Eisenstaedt em 14 de agosto de 1945 na Times Square, em Nova York. A imagem mostra um marinheiro beijando uma enfermeira em comemoração ao término da Segunda Guerra Mundial.
Voltando à nossa conversa, agora de mãos dadas com uma curiosidade minha: alguém dentre vocês sofre desta deliciosa mania — que embora possa assumir tons neblinados, plúmbeos até, se quisermos ser mais graves, de uma doença — pela falta de conveniência, de savoir faire talvez, como sugeririam os franceses, é inegavelmente irresistível.
Primeiramente, ressaltemos, visando inclusive à prospecção de controvérsias, que o beijo hoje — aquele caprichado, malemolente, coleante e succional, feito aderência de caracol grudado em vidro, ósculo explícito como os do peixe beijador, abrindo e fechando no aquário sua despudorada e rósea boquinha — anda um tanto mofado, abandonado, esquecido nas bocas viçosas. Anda ensimesmado e amarrotado, o pobrezinho do beijo.
A sofreguidão dos fisiológicos, lânguidos e entorpecidos conluios nas décadas e séculos passados, observados nas artes em geral, caiu de certa forma em desuso.
Hoje quase ninguém quer perder tempo, nem com os apetitosos e, a meu ver, insubstituíveis acepipes, hors d’oeuvres do namoro. Os finalmentes sexuais traduzem melhor a azáfama atual. A vida em sua féerie digital é como uma cômoda, compartimentada com um sem número de gavetinhas, cada qual destinada a conter tarefas do cotidiano que, espera-se, assuma desempenho sincronizado.
Em breve retrospectiva, ilustraremos a seguir beijos antológicos, protagonistas do mundo das artes. Aqui divisamos o primeiro beijo no cinema. Enfrentando o pudor da época, o primeiro beijo nas telas deu-se em 1896 e deixou o público boquiaberto, com as trocas de carícias entre os atores May Irwin e John C. Rice no filme “O Beijo”. Em obras clássicas, acenamos com os arrebatadores beijos entre Clark Gable e Vivien Leigh, em “E o Vento Levou”, em 1939. E os romanescos de Cary Grant e Deborah Kerr em “Tarde Demais Para Esquecer”, de 1957.
Viajando à renascença, lembramos que na Inglaterra o povo já mostrava sua predileção por beijocas que aconteciam a torto e a direito. Quem por exemplo visitava um amigo deveria, em sinal de respeito, beijar o anfitrião, sua esposa, filhos e até os bichos de estimação. Todos, sem exceção, na boca. Entretanto no século 15, o Rei Henrique VI, com o objetivo de sustar a proliferação de doenças, proibiu o beijo entre os ingleses. Um pouco depois, no século 17, Oliver Cromwell vetou beijos aos domingos. Algum atrevido que ousasse burlar a lei expunha-se de imediato à prisão.
O beijo da traição
Nem sempre, para infortúnio dos amantes, o beijo constou como prova cabal de afeto. Não conseguimos esquecer o beijo de azinhavre de Judas, apóstolo traidor de Jesus, indicando com a carícia aos guardas romanos que ele deveria ser preso.
Ousadia também é o que não falta na acrobacia de línguas e clamores que permeiam o cinema. A intensidade dos beijos homoeróticos entre os atores Heath Ledger e Jake Gyllenhaal, em o “Segredo de Brokeback Mountain” merece seu registro.
“O Beijo” de Picasso, em 1969, retrata a fusão dos amantes cubistas.
Auguste Rodin sacraliza, em 1886, a envolvência e entrega no encontro amoroso, em escultura marmórea.
Aproximando-nos neste momento da música, recordamos a magistral cantora cabo-verdiana, Cesária Évora, intérprete de “O Beijo Roubado”.
Elencamos a doce e sensual Marisa monte, interpretando “Beija Eu” em compilação de vídeo com alguns dos melhores beijos do cinema. Por fusão, desfilam cenas inebriantes de filmes como “Tróia”, “Cidade dos Anjos” , “Doce Novembro”, “Piratas do Caribe”, “Homem-Aranha”, “Sr. e Sra. Smith” e “O Segredo de Brokeback Mountain” dentre outros.
Afinal, o que é melhor que beijo na boca: chocolate, videogame, una vera pizza napolitana?
Enquanto você decide, importa esclarecer que muito além de se posicionar como um livro centrado em mirabolantes técnicas e pitorescas posições sexuais, o “Kama Sutra” abrange desde sempre os meneios da sedução e suas variantes, na forma de provocativos beijos, como nos 16 tipos que o livro evoca. Neste coquetel, há tira-gostos irresistíveis sublinhados em matéria da “Revista Superinteressante”.
1 — Beijo Nominal: Um dos amantes toca a boca do outro com os lábios, sem fazer mais nada.
2 — Beijo Palpitante: Durante o beijo nominal, um dos amantes movimenta o lábio inferior, mas não o superior.
3 — Beijo de Toque: Um dos amantes toca os lábios do outro com a língua, fecha os olhos e coloca suas mãos nas do outro. Lambidinha romântica? Risos.
4 — Beijo Direto: Os lábios dos dois amantes entram em contato direto. Aqui no ocidente, esse beijo também é conhecido como “selinho”.
5 — Beijo Inclinado: É, basicamente, o selinho (Beijo Direto), mas os amantes devem estar com as cabeças inclinadas.
6 — Beijo Voltado: Um dos amantes volta o rosto para o outro, segurando a cabeça e o queixo do outro enquanto se beijam.
7 — Beijo Pressionado: lábio inferior é pressionado com muita força pelos dedos do amante. Há ainda o beijo “muito pressionado”, quando o lábio inferior é agarrado pelo amante entre dois dedos e depois pressionado com o lábio. Meio estranho, mas vale a pena tentar, não?
O beijo do lábio superior pode ser feito por homens de bigode. Já o agarrado, não!
8 — Beijo do Lábio Superior: O amante beija o lábio superior do outro e o amado, por sua vez, beija seu lábio inferior.
9 — Beijo Agarrado: Um dos amantes toma ambos os lábios do outro entre os seus. Mas atenção: só homens sem bigode podem dar esse beijo! Polêmico.
10 — Luta de Línguas: Durante o beijo agarrado, um dos amantes toca os dentes, língua e céu da boca da pessoa amada. Também é permitido pressionar os dentes de um contra a boca do outro. Perigoso.
11 — Beijo que Acende o Amor: Acontece quando um amante contempla o outro adormecido e o beija (não necessariamente nos lábios, fica a dica).
12 — Beijo que Distrai: É quando se beija o amante enquanto ele está trabalhando, olhando para outra pessoa ou quando estão brigando.
13 — Beijo que Desperta: Ao chegar em casa tarde da noite, o homem beija a amante que está dormindo. Dica: a mulher pode só fingir que está dormindo.
14 — Beijo Revelador de Intenção: Beija-se o reflexo da pessoa amada num espelho, na água ou na parede.
15 — Beijo Transferido: Quando se beija uma criança de colo, um retrato ou uma imagem na presença da pessoa amada.
16 — Beijo Demonstrativo: Quando o homem beija os dedos das mãos (quando a mulher estiver de pé) ou dos pés (quando ela estiver sentada) em um local público. Ou quando a mulher se deita no colo do amante e beija suas coxas ou o dedão do pé.
Depois desta maratona de beijos, vale assinalar que a ideia desta crônica reside em buscar revivescer o combalido, torpedeado e esgarçado beijo. O beijo chinfrim, analógico. Derrotado frequentemente por batalhas travadas na rotina com as megapromessas do virtual. Beijo atônito. Alijado por euforizantes experiências em realidades supra-aumentadas e que tais.
Mas cá entre nós: uma dança de rosto colado pega bem sempre. Atravessa gerações com seu arfar, ritmo e molejo insubstituíveis.
Que a basorexia, então, recaia como epidemia sobre nossos entorpecidos e distraídos corpos e bocas erráticas, deslizando à solta pelos salões da vida. O silêncio de um beijo, molhado apenas pelo ruído de oportunas onomatopeias, sem dúvida é dos mais almejados que há, nas vitrines do consumo humano.