O maldito encontro com Walter Franco

Os tempos são outros. E continuam difíceis. Os meus heróis deixaram de morrer de overdose para morrer de velhice, suaves e tranquilos, feito passarinhos. Foi assim que a família noticiou o apagamento em definitivo do cantor e compositor paulista Walter Franco. E eu que jurava que ele fosse mineiro. Como sou burro. Arrebatado por um acidente vascular cerebral, aos 74, acabou lacrando a média de expectativa de vida no Brasil. Em polêmicos tempos de reforma previdenciária pelo Congresso Nacional, Walter Franco escapou com sobras da maldição do Clube dos 27, da qual foram vítimas alguns ícones da música, como Jimi Hendrix, Jim Morrison e Janis Joplin.

Preciso confessar a minha ignorância. No fundo, no fundo, eu conhecia apenas três canções do Walter, que deve ser uma espécie de parente meu, um primo distante, já que também assino o sobrenome “Franco”. A despeito de parentescos, espero, sinceramente, que ele me perdoe pelo conhecimento raso e pela falta de engajamento cultural, onde quer que ele esteja, se é que está nalgum lugar, além da imaginação fértil e da memória afetiva das pessoas. Gosto muito de “Vela aberta” (a minha preferida nesta resumida trinca de joias), “Coração tranquilo” e “Serra do luar”.

A morte de um artista sempre me afeta de uma maneira peculiar, nostálgica. Não sei bem como explicar. Há anos atrasado, dediquei-me a escutar o repertório autoral do Walter, desde que soube do seu falecimento. Particularmente envergonhado, tomei a iniciativa de pesquisar mais sobre a sua vida profissional e constatei que, aparentemente, ele teve uma carreira consagrada pelos seus pares, mas, subestimada, no geral. Não se pode afirmar que ele tenha sido um cantor popular, muito menos, que tenha recebido do público o devido reconhecimento. Tanto assim que foi rotulado, provavelmente, pela crítica especializada e pelos gestores do mercado consumidor, como um artista “maldito”, seja lá o que o termo signifique. Se a referida alcunha denota um sujeito que produz arte de forma livre, desapegado aos padrões vigentes, à margem das exigências estéticas, mercadológicas e do senso comum, então, eu fico com os malditos, os malucos belezas de quem falou Raul.

Vive-se uma duradoura estiagem criativa na música popular brasileira, a qual expõe as chagas da irrelevância, a “sofrência” cultural de que nos falou, recentemente, com muita propriedade, o icônico cantor Milton Nascimento, este sim, mineiro de carteirinha. Foi dentro deste contexto de estarrecimento, remorso e autocrítica que acabei me deparando com Walter Franco. E foi justamente num sonho que ele me falou, ou melhor, que ele cantou.

— Amor, vim te buscar em pensamento. Cheguei agora no vento. Amor, não chora de sofrimento. Cheguei agora no vento.

— Que canto é esse, Walter? Você tá morto, cara.

— O que é que tem nessa cabeça, irmão? Saiba que ela pode explodir. Eu só voltei pra te contar.

— Tenho medo, Walter. Nunca conversei com os mortos. Não que eu me lembre.

— Quem tem tutano, tutano tem. Que não tem tutano, tutano não tem.

— Francamente, Walter. Que droga de conversa mediúnica é essa? Você tá me assustando.

— Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.

— Me explica como é que eu faço isso, primo.

— Abra os braços. Respire fundo e corte os laços todos deste mundo. Quem puxa aos seus não degenera.

— Não é tão simples quanto parece. O que é a vida, afinal?

— Viver é afinar um instrumento, de dentro pra fora, de fora pra dentro, a toda hora, a todo momento, de dentro pra fora, de fora pra dentro. Revolver.

— Você vai fazer falta, Walter, pode crer. O Brasil está demandando lideranças inteligentes, cabeças livres e pensantes, artistas visionários e irreverentes como você. Vai deixar saudade. Sinto uma angústia danada aqui por dentro, não sei bem como te explicar.

— É uma dor canalha que te dilacera. É um grito que se espalha. Também pudera, não tarda nem falha, apenas te espera num campo de batalha.

— Desde os primórdios, na época dos grandes festivais, você foi considerado um artista de vanguarda, um poeta marginal, incompreendido, que não falava diretamente aos ouvidos do povão. Como você se sente em relação a isso?

— Que seja feita a vontade do povo.

— E agora? Quais são os projetos para uma vida a ser vivida no Além? Existe futuro aí no céu?

— Quero os horizontes novos. Sou irmão de outros povos que estão para além do mar.

— A gente vai se encontrar um dia, primo?

— Não me pergunte. Não me responda. Não me procure. E não se esconda. Não diga nada. Saiba de tudo. Fique calado. Me deixe mudo.

— Pra terminar esse meu alegre devaneio, que tal deixar uma mensagem para o povo brasileiro?

— Eu te amei como pude. Feito lixo que queima. Feito bicho que se espanta. Eu te amei como pude. E eu quero que esse afeto saia. Ou não. Até breve.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.