Alan Moore é uma prima-doma e dá chilique cada vez que uma obra sua é adaptada ou ganha sequência. No caso de “Watchmen”, a encrenca vem de longe. Em 1984, Moore foi contratado para introduzir no Multiverso DC os personagens da editora Charlton Comics, recém adquirida pela DC.
Ao contrário da Marvel, que criou um universo conectado e organizado pelo editor Stan Lee, a DC sempre foi uma bagunça. A editora, que faz parte do grupo Warner Media desde 2009, cresceu comprando personagens concorrentes para depois enfiá-los a fórceps no mesmo playground.
No caso da Charlton, a ideia era apresentar ao leitor personagens desconhecidos como Questão, Besouro Azul, Pacificador e Capitão Átomo. Mas a proposta de Alan Moore foi tão ousada que o editor da DC na época, Dick Giordano, optou por uma série adulta independente. Com carta branca, Moore se juntou a Dave Gibbons, seu parceiro na revista inglesa de ficção científica “2000 AD”, e enfiou o pé na jaca.
Lançada em 12 edições entre 1986 e 1987, “Watchmen” é uma das obras literárias mais impactantes da segunda metade do século 20. A série afetou não apenas as HQs, mas também o cinema e a literatura, trouxe respeitabilidade a um gênero literário menor e mostrou como é possível contar grandes histórias mesmo quando os protagonistas vestem cueca por cima da calça. Sem ela não haveria “Coringa”, o “Batman” de Christopher Nolan, “Os Incríveis”, “Kick-Ass”, os filmes da Marvel e possivelmente nem as carreiras de Neil Gaiman e Michael Chabon.
A graphic novel é sempre citada ao lado de “O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller, também publicado em 1986, mas as duas obras são muito diferentes. O Batman de Miller é obcecado e violento, mas encarna as melhores virtudes americanas e ganha o direito moral de impor a lei com as próprias mãos. Já os “Watchmen” de Moore e Gibbons representam o pior da América. São violentos, reacionários, fascistoides e, na melhor das hipóteses, querem apenas fama e dinheiro, como a Espectral original. O melhor entre eles, Ozymandias, descrito no quadrinho como o único herói de “centro-esquerda” do grupo, é capaz de assassinar milhões de pessoas para alcançar seus objetivos, borrando a linha que separa os super-heróis dos super-vilões.
“Watchmen” é uma sátira perversa, como todas as boas sátiras, mas Moore e Gibbons têm genuíno carinho pelos seus personagens e pelo gênero literário a que eles pertencem. Rorschach, Dr Manhattan, Espectral, Comediante, Coruja e Ozymandias são criações complexas e multifacetadas. Você compreende as opções deles, mesmo que não concorde com elas. A técnica narrativa também é primorosa, pois Moore lança mão de diversos recursos multimídia (trechos de livros, recortes de jornais, entrevistas), aproximando as HQs da literatura de vanguarda de Vladimir Nabokov, William Burroughs e Georges Perec. Ao mesmo tempo, “Watchmen” também lança um olhar nostálgico ao gênero dos super-heróis, recriando um passado ficcional sólido para o universo onde a aventura transcorre. Moore aprofundaria esse recurso narrativo nos anos 90 com “Supremo”, uma cópia de Superman criada por Rob Liefeld na Image Comics que ficou melhor que o original enquanto Alan Moore esteve no comando dos roteiros.
O traço formal de David Gibbons dá a sutileza e a sobriedade que a série precisa. Um desenhista mais vanguardista, como Simon Bisley ou Bill Sienkiewicz, poderia ter feito uma graphic novel muito mais bonita, mas certamente menos efetiva. Gibbons não rouba atenção do texto e usa suas imagens para reforçá-lo.
Com o sucesso da série, Alan Moore e a DC entraram em conflito logo de cara. Os “Watchmen”, afinal, são derivados dos personagens da Charlton. Rorschach é o Questão, Ozymandias é Thunderbolt, Dr Manhattan é o Capitão Átomo e por aí vai. Por outro lado, Moore acrescentou muito mais camadas a essas criações. Rorschach tem mais nuances que o herói inventado por Steve Ditko (que, aliás, também é co-criador do Homem-Aranha).
O imbróglio judicial continua até hoje e a amizade entre o criador e a DC terminou de vez em 2010, quando a editora comprou a Wildstorm de Jim Lee e levou junto o selo ABC Comics, de Alan Moore, que publicava “Promethea” e “Tom Strong”.
Com o afeto encerrado, a DC agora tira tudo o que pode dos personagens criados (ou revisados) por Moore. Teve o filme equivocado de Zack Snyder em 2009, a dispensável série de quadrinhos “Antes de Watchmen” em 2012 e, recentemente, os personagens foram incorporados ao Multiverso DC na série “O Relógio do Juízo Final”, publicada no Brasil pela Panini. Com texto de Geoff Johns e desenhos de Gary frank e Brad Anderson, a série é engenhosa e respeitosa, mas isso não importa um cazzo porque Moore continua puto.
Ele tem toda a razão de brigar pelos personagens criados (ou revisados) por ele. Por outro lado, o autor faz exatamente a mesma coisa em “A Liga Extraordinária”, incorporando criações de Bram Stoker, Henry Rider Haggard e Virginia Woolf. Na verdade, o primeiro grande sucesso de Alan Moore como roteirista foi “Miraclemen”, que era uma versão britânica não-autorizada do Capitão Marvel da DC, que hoje é conhecido como Shazam, porque o nome “Capitão Marvel” pertence à concorrência. O mundo dos quadrinhos nunca foi justo, mas ele é democrático: não é justo com ninguém.
Ok, o texto está longo demais. Continuo semana que vem neste mesmo bat-horário e nesse mesmo bat-canal quando você finalmente vai saber:
1 — Como “Watchmen” se insere no stress do apocalipse nuclear dos anos 80 e a relação dele com obras como “Mad Max” e o “Exterminador do Futuro”.
2 — Porque Zack Snyder é uma besta e o filme dele é tão ruim, apesar de alguns acertos pontuais, tipo Malin Akerman como a segunda “Espectral”.
3 — E, se couber, também falo da nova série da HBO.
Stay tuned.