Quando eu era criança, e isso já faz um bocado de tempo, as professoras tinham o costume de solicitar que escrevêssemos uma redação cujo tema, invariavelmente, era “As minhas férias”. As redações não valiam nota e eu desconfio que sequer eram lidas. Mesmo sendo um pirralho, eu suspeitava que usavam da artimanha para encher linguiça no primeiro dia de aula. Para a criançada, era deprimente ter que retornar à escola depois de quase três meses de férias. Sim, já houve um tempo em que se folgava muito. Vazávamos no final do mês de novembro e só retornávamos após o carnaval. Éramos felizes e não sabíamos? Não me perguntem sobre a felicidade. Não é o meu forte.
Por mais que eu queimasse a piolhenta para escrever uma redação minimamente cativante, os roteiros acabavam por se repetir. Lá em casa, de uma forma ou de outra, quase todos os passeios acabavam na roça ou na rua. As férias da classe média não eram lá essas coisas. Relevava-se a grana curta optando-se pelas viagens de custo zero, quando esporávamos cavalos, pescávamos traíras pelo beiço, caçávamos passarinhos indefesos e cometíamos toda espécie de atrocidade infantil aceitável. Também era corriqueiro preencher o tempo ocioso com brincadeiras nas ruas, onde ralavam-se os joelhos, batia-se bola e arrumava-se confusão. Nunca esmurrei uma pessoa. Deve ser esse o meu problema.
A primeira vez que eu vi o mar foi na Bahia. Férias perdulárias da família. Rompemos os padrões e os estradões de terra até Salvador, dentro de uma Kombi recauchutada que mais parecia um membro da família. Lembro-me de pisarmos a areia branquinha, chorando de pânico, com medo de sermos engolidos pelas ondas. É desde pequeno que se tem medo da morte. Demorou muito até que meu pai nos capturasse e nos obrigasse a dar tibuns na água salgada. Superado o trauma da primeira entrância, partia-se para as reentrâncias e a exploração da orla em busca de conchinhas, estrelas do mar e outros crustáceos desencarnados. Mas, a primeira poça de piche a gente nunca esquece. O que seria aquela gosma preta na areia? Claramente aturdido, meu pai explicou que as manchas viscosas eram óleo que escapava dos navios cargueiros na baía. As agressões à natureza não são de hoje.
Tenho evitado os telejornais para não me amargar além da conta. Mesmo assim, nesta semana, teimei e vi que os noticiários repercutiam uma tragédia ecológica, o misterioso ataque de uma mancha de óleo contra a costa do nordeste brasileiro. Até então, as autoridades competentes não mostravam a competência que se esperava ao não explicarem de onde vinha a desgraçada da graxa: se navio naufragado, se atentado comunista, se coisa de Deus, se petróleo que brotava espontaneamente do fundo do mar por meio de uma fenda ou de uma fissura.
Conheço quase toda a costa brasileira. Nunca tinha pensado em morar na beira do mar. Entretanto, a primeira vez que sofri este impulso foi durante uma passeio a Jijoca de Jericoacoara, no Ceará, faz uns cinco anos. Senti um invulgar contentamento ao cogitar viver numa cidadezinha acolhedora onde eu pudesse resolver as minhas pendências e demandas cotidianas andando a pé, sem asfalto, sem automóveis, sem congestionamentos, sem o estresse mórbido, sem sentir aquele impulso insano de trucidar estranhos ao volante. Meus sonhos são à prova de piche. Jijoca, me aguarde. Quem sabe, um dia, eu volte pra ficar.
Mais uma vez, vacilo e me permito assistir ao telejornal. Promoveram uma deusa negra ao cargo de âncora do programa. Ela parece bela e suave como um pôr do sol na duna alta de Jericoacoara. Não consigo disfarçar a satisfação quando os seus lábios sedosos anunciam que a aliança entre os sujeitos da extrema direita que estão na gerência da nação, certos homens rancorosos e pouco instruídos que atiram pelos dedos das mãos, cínicos, dementes, está ruindo feito um castelo de areia. As autoridades oficiais constituídas pelo conluio partidário e pelo voto popular acusam-se de conspiração e vagabundagem. Falou-se em implosão de um pelo outro. Força de expressão, eu espero. Nunca se sabe. Não dá pra confiar em gente que defende tortura.
Portanto, a primeira vez que eu vi o mar foi na Bahia. Eu era só um menino durante o regime militar no Brasil. Naquele tempo, uma das canções mais executadas nas rádios era “Coração Vagabundo”, cantada pelo jovem e irreverente baiano, Caetano Veloso, que se exilara em Londres. Desavisado das iniquidades do ser humano, eu brincava nas ondas, ria desbragadamente e sequer supunha que o meu coração vagabundo só queria guardar o mundo em mim. Só que não deu.