O complexo de inferioridade dos fãs de filmes de super-heróis explica a histeria por conta do filme “Coringa”

O complexo de inferioridade dos fãs de filmes de super-heróis explica a histeria por conta do filme “Coringa”

Muitos leitores de histórias em quadrinhos da Marvel e da DC e, mais recentemente, fãs de filmes de super-heróis, sofrem de um estranho complexo de inferioridade. A maioria não consegue explicar exatamente o motivo, sobretudo agora que a cultura nerd está em alta. Vivem como se estivessem na Matrix. Tudo parece normal, mas, em seus íntimos, sentem que algo não está certo. Alguns evitam até mesmo pensar sobre o assunto, temerosos de serem descobertos em sua fraqueza. Discutir o problema é tabu: preferem se esconder na segurança dos fóruns de internet, onde todo mundo concorda no principal mesmo quando discorda violentamente nos detalhes.

Mas o elefante branco com asas permanece na sala. O fato é que, por mais que quadrinhos e filmes de super-heróis tenham adquirido status cultural e não sejam mais considerados apenas coisas de criança, essas pessoas sentem que ainda são tratadas como leitores e espectadores de segunda categoria. Culpa de milênios de hegemonia de temas e linguagens artísticas tidas como mais refinadas e profundas que outras. Nem sempre são, mas o resultado é o surgimento desse complexo de inferioridade diante de cultores de obras canônicas, que podem ir de Machado de Assis a Shakespeare, passando por Kubrick e Coppola. A situação fica mais evidente quando tentam transformar artificialmente bons produtores de entretenimento ligeiro em criadores que possam competir com os medalhões canônicos. Aconteceu esse fenômeno com escritores como Stephen King, J. K. Rowling e George R. R. Martin, entre outros. Não basta que sejam divertidos: os fãs querem atribuir a eles uma sofisticação que obviamente não possuem. Mas quando a nudez do rei é exposta, diante da objetividade crítica, a única resposta é a idolatria acrítica. Para se defender, atacam.

Desta forma, sempre que surge um produto cultural que parece poder ser comparado, aproximado ou emparelhado com obras consideradas eruditas, esse produto se torna uma espécie de Santo Graal do gênero. Torna-se intocável, impossível de ser criticado. É o mecanismo de defesa criado pelo complexo de inferioridade.

Foi o que aconteceu com “Coringa”, dirigido por Todd Phillips e estrelado por Joaquin Phoenix. A narrativa do filme, a despeito de sua inegável competência nos aspectos técnicos, possui pontos fracos evidentes, mas esses problemas se tornaram irrelevantes diante da compensação psicológica trazida pelo longa-metragem, com o alívio de ver um filme de super-herói (ou vilão) aparentemente respeitável. O filme passou a ser bom não por si mesmo, mas por remeter a certa idade do ouro (a Nova Hollywood das décadas de 1970 e 1980) e por tratar de um tema sério: doenças psiquiátricas. Se a obra é consistente dentro de sua premissa é o menos importante. Tornou-se socialmente obrigatório gostar de “Coringa”. Do contrário, o herege é acusado de ser mal informado e pode sofrer até mesmo patrulha ideológica. Tamanha histeria fez com que defender os méritos do filme passasse a significar defender os méritos do próprio espectador.  

As respostas mais comuns, dadas em tom ríspido para quem não gostou do filme foram: “você não entende nada de quadrinhos”, “você não entendeu a proposta do filme”, “esse não é o Coringa que você conhece” ou “esse não é o Coringa ainda”. Notem que todas as respostas que pretendem justificar as deficiências da obra foram dadas por meio de elementos que não estão na obra.

Tornou-se socialmente obrigatório gostar de “Coringa”. Do contrário, o herege é acusado de ser mal informado e pode sofrer até mesmo patrulha ideológica

Esse complexo de inferioridade tornou-se ainda mais evidente quando comparamos as reações ao fator premiação no Oscar. Instantaneamente, “Coringa” tornou-se o favorito. Se não vencer será injustiça ou reacionarismo dos membros da Academia de Hollywood. Em contrapartida, a sugestão de que “Vingadores: Ultimato” poderia concorrer foi tomada como piada. Porém, comparados objetivamente, o filme da Marvel é mais bem-sucedido dentro de sua premissa, que é ser uma grande aventura, não isenta de drama. O cenário, os personagens e seus arcos dramáticos são mais bem construídos. Até mesmo a atuação de Robert Downey Jr, como Homem de Ferro, me parece mais coesa que a de Joaquin Phoenix. Essa afirmação pode parecer chocante, mas é facilmente verificável. O perfil do personagem Coringa deixa a atuação de Phoenix naturalmente mais vistosa, mas o fato de o ator atirar para todos os lados (seu Coringa ora é infantil, ora é ingênuo, ora é sedutor, ora é soturno, ora é histriônico, ora é sério etc., etc., etc.) não permite que ele entregue um personagem acabado. Os mais ingênuos naturalmente vão defendê-lo bradando que o Coringa é assim mesmo, que é múltiplo e imprevisível. Mas não se trata disso. O fato é que Joaquin Phoenix entregou uma série de esquetes separados, que dificilmente se mesclam. Individualmente são brilhantes, mas não têm conjunto. Não vemos um Coringa multifacetado, mas uma coleção de tentativas de compor um personagem. Impressionam pela técnica de Phoenix, mas não há Coringa em cena.

Mesmo diante desse fato objetivo, afirmar que Robert Downey Jr. se saiu melhor soa risível. Por quê? Porque “Vingadores: Ultimato” é um filme para crianças. “Coringa”, não. “Coringa” é coisa séria. Um é colorido, o outro é escuro. Um é divertido, o outro é pesado. O complexo de inferioridade não permite ver além do banal. Mas, independente disso, nada muda o fato de que a aventura da Marvel é tão superior ao drama psicológico da DC quanto o genial livro infantil “O Pequeno Príncipe” é superior ao dramalhão geopolítico “O Caçador de Pipas”. O lúdico de um é esteticamente mais interessante que o choro e ranger de dentes do outro. Retrucar que são coisas diferentes e que não devem ser comparadas não passa de fuga. Para o mercado e para os olhos do espectador comum, ambos são filmes de super-heróis. São vendidos e comprados assim.    

Sim, eu sei o que estão pensando: “ele só escreveu isso porque é um marvete tosco”. Tá bom! Tá bom! Eu entendo…

O complexo de inferioridade é tão arraigado que poucos perceberão que este texto é uma forma de afirmar que ele não é necessário. Possivelmente me atacarão como se eu estivesse fazendo uma acusação. Não é isso. Quadrinhos e filmes de quadrinhos não precisam ser “Hamlet”, “O Pêndulo de Foucault” ou “Meridiano de Sangue” para serem apreciados. Eles existem dentro de sua própria lógica. Mas, claro, ler “Hamlet”, “O Pêndulo de Foucault” e “Meridiano de Sangue” nunca faz mal. Ter esse tipo de repertório ajuda a colocar as coisas em perspectiva.

Afinal, por que tão sério, filho?

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.