Para você que gosta mais de animais do que de pessoas

Para você que gosta mais de animais do que de pessoas

Dois rapazes fumam na calçada. A onda agora são os cigarros eletrônicos. Chupam a fumaça a partir de um artefato, um pequeno dispositivo que, à distância, parece mais um pen-drive. Se a intenção é alimentar o vício eles bem que podiam fazê-lo com mais classe, tragando cigarros de verdade, sugando o tabaco à moda antiga, com o mesmo charme dos caubóis enfisematosos e dos boêmios que criavam caranguejos nas laringes cancerosas.

A conversa entre eles parece animada. Sopram vapor branco, um na cara do outro. Riem. Tocam-se. Ajeitam as picas dentro das cuecas. Provavelmente, falam das mulheres. Ou dos homens. Ou de futebol. Talvez, façam piadas ácidas a respeito do atual governo. Tá risível mesmo. Quem sabe, reclamem da delegação de demônios oficiais que compareceu à canonização da Irmã Dulce no Vaticano, inapropriadamente financiados pelo erário público. Todo erário é público, eu sei, mas, eu sou um sujeito prolixo que se amarra em redundância.

Almoço sozinho. Para os garçons, nada mais sou do que um ponto de referência no salão: aquele sujeito careca sentado na mesa 14. Tudo entra na comissão global da equipe. Tomo o meu famigerado Cuspe com raspas-de-limão. Alimento um vício que sequer possuo. O que me consome, na verdade, são as dúvidas. Tem um sujeito inconveniente sentado na mesa ao lado que, mesmo sem eu perguntar, explica que o ator Joaquin Phoenix tinha, sim, nascido com lábio leporino, fez uma cirurgia reparadora e interpretou o pior Coringa da história do cinema. Tem gente que não tem limites: John Lennon teria feito um pacto com o diabo e isso explicava a fama estratosférica dos Beatles que eram, musicalmente, umas antas. Eu não devia ter saído de casa hoje, ainda mais com a clássica camiseta do “Yellow Submarine”.

No restaurante tem uma brinquedoteca. Há uma mesa gigantesca onde crianças pobres de 3 a 4 anos almoçam por conta da casa. O rango coletivo faz parte de alguma espécie de ação social do estabelecimento em tributo ao Dia das Crianças. As boquinhas miúdas mastigando comida fresca comovem-se profundamente. Não sei bem explicar por quê. Sinto azia, nostalgia, melancolia e uma vontade danada de nunca mais escrever poesia. Rimas pobres nunca foram o meu forte.

De repente, sinto um orgulho desgraçado de ter nascido numa família de pés-rapados. O suicídio de uma avô que não conheci. A orfandade de meu pai. As noites que passou fome. A carreira bem-sucedida no Banco do Brasil. A aposentadoria compulsória por causa da Doença de Chagas. O casamento prometido com uma professora de escola pública. As dores lancinantes dos quatro filhos que mamãe pariu. As refeições divididas em partes iguais, para não dar briga. Os periquitos. Os gatos. Os cães. Até um cágado, um tatu e uma arara recém-escapulida do jardim zoológico. Meu pai sempre gostou mais dos animais do que das pessoas. Hoje, compreendo.

Os piqueniques com farofa de frango. O suco de laranja envazado em garrafas de vidro para se passar por Fanta. Todo o sacrifício em prol dos filhos, até mesmo ludibriá-los. O xixi feito numa lata de Leite Ninho. As roupas de gosto duvidoso que passavam de irmão para irmão, puindo, puindo, puindo até a morte. Os seiscentos quilômetros de terra rodados dentro de uma Kombi caindo aos pedaços. A primeira vez que vimos o mar. O medo de sermos arrastado pelas ondas do mar. A dúvida, até hoje insolúvel, de quem teria salgado toda aquela água. A areia da praia de Itapuã guardada dentro de uma vidro de maionese como um troféu de caipirice insuspeita.

O garçom coloca sobre a mesa a conta que sequer eu pedi. Os serviçais arrastam cadeiras pelo salão para ver se eu me toco. Sou o único cliente que ainda resta. A meninada tinha vazado. Faz um calor dos diabos. Pago a conta. Deixo gorjeta. Metade dos garçons vai para o céu, pode acreditar. Confiro a sarjeta por mera formalidade: nada de bitucas. Os rapazolas falantes também se mandaram. Fumar dava câncer. Pensar dava saudade. Esqueço que tenho um horário marcado, que tenho uma agenda de compromissos a cumprir e que vim de carro. Desço a rua a pé, livre, leve, solto feito fumaça, qualquer tipo de fumaça, com a mesma alegria, esperança e falta de classe do menino pé-de-chinelo que um dia eu fui.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.