Joaquin Phoenix é o pior Coringa da história do cinema

Joaquin Phoenix é o pior Coringa da história do cinema

 “Coringa” é o pior tipo de filme. Suas evidentes qualidades escondem um defeito fatal. “Coringa”, dirigido por Todd Phillips, é tecnicamente bem feito, parece profundo e complexo, massageia o ego de quem assiste, fazendo-o se sentir inteligente e sofisticado. Aconteceu o mesmo fenômeno em filmes recentes como “Prometheus”, “Interestelar” e “Blade Runner 2049”. Em todos esses casos, a cosmética apurada e o palavrório pretensamente intelectualizado escamoteiam o fato de que traem os conceitos básicos da história que pretendem contar. 

O fato é que o que deveria ser o filme solo do Coringa não tem um Coringa para chamar de seu. Mesmo levando-se em conta que há dezenas ou mesmo centenas de versões do Coringa em filmes, desenhos animados, quadrinhos, videogames e outras mídias. A maioria das versões, mesmo as mais inusitadas, costumam seguir linhas mestras que tornam o personagem reconhecível. Só para ficar no cinema, o Coringa bufo de Cesar Romero era o Coringa que a psicodelia da era hippie pedia. Jack Nicholson pintado de branco interpretou Jack Nicholson pintado de branco e ainda assim fez um Coringa funcional. O Coringa cerebral de Heath Ledger era um anjo exterminador. Mesmo o Coringa cafetão bisonhamente interpretado por Jared Leto dialoga com a cultura jovem contemporânea. O que certamente não acontece com o Coringa de Joaquin Phoenix, que é anacrônico e inverossímil, apesar de se vender como realista. Esse Coringa só tem o nome de Coringa e mais nada.

A obra funciona esteticamente emulando a cinematografia da Nova Hollywood das décadas de 1970 e 1980, misturando elementos de filmes como “Taxi Driver” e “O Rei da Comédia”, mas o protagonista não combina conceitualmente com o personagem clássico que quer evocar. O Coringa não é apenas um maluco descontrolado, é um gênio estrategista desprovido de empatia, que mata para se divertir e irritar o Batman. Todas as versões anteriores foram assim. O Coringa é perigoso não porque é um louco clínico, mas porque é um agente do caos. Sua risada é irônica, sarcástica, debochada. Ele ri porque não se importa, ele ri da humanidade, o riso é seu estado natural. Ele ri porque Batman não ri.

No Coringa de Joaquin Phoenix o riso é o sintoma de uma doença neurológica. Ele ri quando está nervoso, irritado, fragilizado, acossado ou triste. Não deixa de ser original. Tal abordagem poderia ser interessante, até se assemelha ao conceito usado no Coringa de Jack Nicholson, que teve os músculos do rosto congelados em um sorriso permanente devido a um acidente com produtos químicos. Ri por fora e chora por dentro. Mas Jack Nicholson usa essa noção para tornar seu Coringa inconstante e imprevisível. Pode fazer qualquer coisa, inclusive matar do nada seu “braço direito”. Com Joaquin Phoenix o objetivo é causar pena e tirar-lhe a culpa por seus atos bárbaros. Neste filme, o culpado é sempre a vítima. Não importa quem o Coringa violente ou mate, ele é sempre o inocente primordial que ganhou o direito de violentar a matar apenas por ter sido vitimado primeiro. O Coringa de Joaquin Phoenix é, acima de tudo, um torturado, um animal acuado que reage violentamente, sem controle de suas ações. Ou está sofrendo ou está em êxtase inconsciente e dançarino, como um urso de circo. Mesmo sua aclamação final não acontece em função do sucesso de seus planos, mas por mero acaso. Esse Coringa é um Beato Salú (o clássico personagem de “Roque Santeiro”) de cabelos verdes.

A tão elogiada atuação de Joaquin Phoenix não me convenceu. Achei histriônica e pouco sutil. Seus movimentos me pareceram autoconscientes e ensaiados, diferentemente dos maneirismos de Ledger, que pareciam fluir naturalmente por mais bizarros que fossem. O Coringa de Ledger se recusava a aceitar que é louco. O Coringa de Joaquin Phoenix anda com um cartãozinho avisando que sofre de transtornos neurológicos, pedindo desculpas antecipadamente. É fácil ser acusado de insensibilidade quando se apresenta esses argumentos, mas é preciso se lembrar de que não estamos falando dos perturbados mentais que conhecemos em nossas vidas cotidianas, pessoas que devem ser tratadas e receber apoio social, e sim do Coringa, um monstro genocida, capaz de arrancar a pele do próprio rosto, matar um adolescente com um pé de cabra e envenenar a água de toda uma cidade. O primeiro sentimento diante de uma criatura tão vil não pode ser a piedade, não pode ser dizer “eu te entendo”.

Nada disso é culpa de Joaquin Phoenix. Ele é um dos melhores atores de sua geração e, obviamente, atuou bem se pensarmos que realizou o que estava no roteiro. Mas uma análise sem deslumbramentos revela que interpretou um deficiente mental genérico, uma versão “cinema de arte” do Tonho da Lua. Na verdade, seu Coringa não é muito diferente do esquisitão que encarnou no filme “O Mestre”, inclusive no olhar, postura e físico esquálido. Com a diferença de que em “O Mestre” o personagem fazia sentido.

Afinal, sejamos honestos, alguém acredita que esse fracote alucinado e descuidado, que não conseguiu seguir de forma competente nem mesmo uma vizinha, é capaz de dar algum trabalho ao Batman? Alguém percebeu inteligência ou habilidades inatas no comediante falido Arthur Fleck, o homem que se tornaria Coringa, o mais temido criminoso de Gotham City? Eu não vi nada. Nem o entrevistador interpretado por Robert De Niro, que mesmo depois do Coringa confessar ao vivo ser um assassino serial continuou tirando sarro da cara dele. Esse Coringa não impõe respeito. Falta carisma, postura e senso de perigo, sobra fragilidade e autopiedade. Tire a arma das mãos dele. Alguém continua com medo? Qualquer peteleco derruba o homem, como ficou provado várias vezes ao longo do filme. É justo lembrar que “A Piada Mortal”, quadrinho clássico escrito por Alan Moore, uma das inspirações para o filme, tinha o mesmo problema.

Dá para levar em consideração um Coringa que não provoca medo? Até o Coringa cafetão de Jared Leto é mais competente neste quesito. Pelo menos não inspirava pena. O Coringa de Leto é sarado, possui um carrão, uma coleção de facas e uma linda namorada maluquete. O Coringa de Joaquin Phoenix fala sem convicção mesmo em seu momento de apoteose e borra a maquiagem com lágrimas. Maquiagem, esse é um ponto importante. A fraca opção de maquiagem usada em Joaquin Phoenix prejudicou muito o resultado final. Lembra demasiadamente o palhaço clássico. Coringa poderia animar festas infantis pintado daquele jeito. Pinguim, Charada e Mulher Gato ririam de sua cara, caso o encontrassem na sede do sindicato dos criminosos de Gotham City. Provavelmente esse Coringa ficaria chorando em posição fetal ao invés de reagir, uma vez que ele só ataca pessoas doentes, idosas ou na traição. Não teria coragem para confrontar fisicamente criminosos experientes.

Falando nisso, detalhe importante: o Coringa de Joaquin Phoenix não é o palhaço do crime amoral que um dia conhecemos, mas um “bandido social”, feito sob medida para agradar estudantes do segundo período de Sociologia da universidade de Gotham City. Não é por acaso que máscaras de palhaço substituem as máscaras dos “anonymous” que ocuparam Wall Street. O patriarca Thomas Wayne, tradicionalmente reconhecido como um homem honrado, foi transformado em um cover de Donald Trump, conforme o “mister president” é visto pelos eleitores democratas. Thomas Wayne será candidato a prefeito. Thomas Wayne promete limpar a cidade. Limpar de quem? Thomas Wayne despreza os pobres. Thomas Wayne não tem responsabilidade social. Thomas Wayne é um moralista hipócrita. Thomas Wayne é virulento e violento. Thomas Wayne agride doentes mentais em banheiros. Por tudo isso, Thomas Wayne merece morrer quando a revolução explode. Ele e sua família tradicional. Martha Wayne, mulher bela, recatada e do lar, sequer tem direito a fala. Só leva bala. Não de um assaltante, mas de um revolucionário cheio de boas intenções. Atira na família Wayne falando: “Thomas Wayne, tome o que você merece”. Merece porque é rico. Cair sagrando na sarjeta é o fim do sonho eleitoral do “canalha” Wayne. E o expectador satisfeito consigo mesmo, embriagado de excitação revolucionária limpinha, balança a cabeça em concordância. Pensa: deviam ter feito o mesmo com Trump, antes dele ser eleito presidente. Muito democrático, muito democrático. Ódio do bem é sempre perdoável. O diretor Todd Phillips deve ter feito as contas direitinho. Sabe que o engajamento político de seu filme pode lhe render alguns prêmios Oscar na atual atmosfera anti-Trump de Hollywood.

O Coringa de Joaquin Phoenix anda com um cartãozinho avisando que sofre de transtornos neurológicos, pedindo desculpas antecipadamente

Nada pior do que estragar uma piada. Circulava uma anedota que dizia que Bruce Wayne é basicamente um capitalista reacionário que não satisfeito em explorar o trabalho da classe operária de Gotham City durante o dia, se fantasia de morcego para espancar pobres e desempregados durante a noite. Era uma piada. O filme de Todd Phillips transformou essa brincadeira sarcástica em cânone. Afinal, o filho do assassinado Thomas “Trump” Wayne só pode se transformar em um vigilante defensor da tradição, família e propriedade. Tal pai, tal filho.

Nestes tempos estranhos onde a Malévola foi “compreendida” e muita gente acha que Thanos tem razão, parece natural que o Coringa se torne herói. O horror! O horror!

Como consolo resta a teoria de que esse Coringa não seria o Coringa em si, o criminoso que enfrentaria Batman no futuro, mas o inspirador de um movimento social. Outras pessoas assumiriam sua identidade ao longo dos anos. Pode até ser, considerando que o filme se passa na década de 1980 e a diferença de idade entre Bruce Wayne e Arthur Fleck. Menos mal. Ou nem tanto, uma vez que o verdadeiro Palhaço do Crime seria apenas o cover de uma figura patética do passado.

Outra teoria, alicerçada nas cenas finais do filme, defende que tudo não passou de um delírio vivido por um interno do asilo Arkham. Loucura pouca é bobagem.

Em todo caso, como diria o Capitão Nascimento, se você gostou do filme lacrador do “Coringa”, você é um fanfarrão. Não merece usar sua camiseta preta do Batman. Coringa, messias do proletariado… me poupem… é você que financia essa merda. Tira sua camiseta preta do Batman! Aqui é Caveira! Aliás, aqui é Morcego!

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.