Os dias transcorrem, a alegria pisca à nossa volta, a paz acena lá de longe com um lenço branco. A felicidade passa por nós e sussurra algumas palavras em nossos ouvidos, ocupados demais com fones sofisticados e outras traquitanas tecnológicas para ouvi-las.
Neste movimento de autorrecolhimento ou auto expulsão simultânea dos clamores do mundo exterior, nos enredamos em um útero ou uma bolha de propriedade exclusivamente nossa. Espaços volitivamente autistas. Impenetráveis. Com nossos ipods, celulares e smartphones caríssimos, somos, nos tempos atuais, conhecidos como integrantes da “geração cabeça baixa”.
Àquela geração para a qual tudo, todos os interesses contemporâneos, se resumem na aquisição sucessiva da mais filigranada e arrojada tecnologia. A ideia é nadarmos nas piscinas da realidade interseccional. Mesclarmos o off line com o online, indistintamente. Como quase-androides ou ciborgues.
Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?
Simulando gueixas pós-digitais, nos rendemos definitivamente aos comandos dos games, consoles, dos contatos intermináveis com outros seres virtuais — distantes do alcance das nossas mãos — enquanto deslizamos nossos ágeis dedos pelas telas frias desses gadgets que nos dominam. Agimos assim, como escravos que já nos tornamos da feérie tecnológica.
Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?
Na hora de dormir a trepada é rápida, ocorre num átimo, sem sofreguidão, pois já faz tempo que os anseios da carne e do espírito foram trocados pelas maravilhas neo-maquínicas, desfilando em série ante nossos hipnotizados olhos. Google Glass, smart-watches, tabletes velocíssimos se refestelam nos poltronas de nossa gula proliferada, feito câncer.
Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?
Quando conseguimos — fato muito raro — nos deter naqueles abençoados momentos, desativar o botão da pressa e virarmos lentamente a cabeça para enxergar o que nos circunda é motivo de especial comemoração. A alegria tenta flertar conosco novamente, pois ela não desiste de tocar nossas anestesiadas emoções. A paz busca se aproximar dos nossos sonhos, cultivando uma paciência desmesurada, até que a abracemos. A felicidade aguarda que possamos decifrar, por instantes que seja, tantas preciosidades que ela tenciona sussurrar em nossos ouvidos.
Será tão difícil encararmos os olhos apaixonados do nosso namorado ou namorada, desfrutarmos do enlevo promissor, nos entregarmos a aconchegos carnais explícitos, ternuras e acarinhamentos nascidos do veludo das nossas mãos? Roçar nossa boca quente em outra, provando salivas mornas, intercambiando corporeidades, lábios umedecidos de desejo pleno e aceso.
Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?
Tornarmo-nos gente, apresentar com orgulho, nos círculos sociais que frequentamos o ser humano de carne e osso que nos compõe. Mas gente saiu de moda, infelizmente. Gente é algo lento, palpável, desagradável. Quase repugnante, até, a possibilidade de farejarmos e descobrirmos o funcionamento de outros corpos em meio a realidades aceleradas e frias. Não revelamos essa triste verdade para ninguém. Esta sensorialização inundada de odores hormonais que se imiscui em nossa fisiologia.
Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?
Aquela infinita imensidão azul, cujo início remonta a séculos imemoriais, o paraíso perdido e doce. A promessa de voos e bailados por entre suaves nuvens. Um sopro de vento talvez nos conduza ao cimo de uma árvore de cujos galhos pendem frutos saborosíssimos. Seguem-se riachos, cachoeiras, pradarias. O grito silencioso dos inúmeros tons de verde impregnados na paisagem ondulada e envolvente. Pássaros de todas as cores, flores belíssimas, animais silvestres, insetos faceiros como borboletas, joaninhas e gafanhotos ensaiam danças à nossa volta.
Mas não os percebemos. Porque ainda é difícil viver e respirar sem distrações. Amar devagar, com leveza. Entregar-se à delicia das cores vivas, longas caminhadas em trilhas virgens de florestas cuidadas por duendes e gnomos. Mergulhar nas profundezas do mar, buscando desvendar imensuráveis segredos, escondidos em algas, cavernas, corais. Depois retornar à superfície e olhar para o alto, erguer os braços imiscuindo -nos nesse azul recheado de promessas que tingem a imensidão celeste.
Quem sabe neste exato instante, passemos a olhar para a frente, para os lados, para o céu. Girando a cabeça mais livres e conectados com o universo. Mais felizes e humanizados. Esquecendo, inclusive, nossos celulares desligados, em algum bolso da calça.