Em tempos apressados como o nosso, há diversas fórmulas para desacelerar a vida e retomar o fôlego necessário para encará-la. Alguns recorrem a retiros espirituais numa cidadezinha com menos de dois mil habitantes, outros vão à Tailândia se reconectarem com o “eu interior” e uns apostam na boa e velha garrafa de vinho. Em “Meu Ano de Descanso e Relaxamento” (Todavia, 240 páginas), a autora estadunidense Ottessa Moshfegh cria uma personagem que a partir da dificuldade em lidar com a realidade, toma uma decisão radical: hibernar por um ano inteiro.
A premissa chega a ser ofensiva e é exatamente dela que surge o hilário. Afinal, numa sociedade em que o sono é um privilégio, quem conseguiria o luxo de dormir por 365 dias? Em um primeiro contato com a narrativa, não há exatamente um sentimento de empatia pela decisão da mulher. Os motivos que levam uma jovem de 26 anos, herdeira, bonita “uma mistura de Amber Valletta e Farrah Fawcett”, recém-formada em Columbia e moradora do badalado Upper East Side se fechar em seu apartamento orbitam no imaginário do leitor durante boa parte da narrativa. Ironicamente, é impossível ser completamente hostil à decisão da personagem, pois confessemos: no fundo, o que gostaríamos mesmo era de sumir por um tempo. Dormir, neste caso, é a solução quando viver é horrível.
Narrado em primeira pessoa, Ottessa relata de forma cáustica e irônica a rotina do sono autoimposto da personagem durante o ano 2000. O período sabático desenrola-se no período pré 11 de setembro, o que produz a conjuntura fundamental para dimensionar o desprezo que a personagem alimenta pela vida ao seu redor. Os dias vão passando como uma névoa, um estado indistinto entre sonho e realidade numa experiência aparentemente sem surpresa, espanto ou perspectiva. Equilibrar o absurdo e o hilário na mesma zona de sentido é o grande triunfo de autora para instigar o leitor página a página.
Enquanto o mundo lá fora desfruta o encantamento das novidades do novo milênio, a vida da narradora se reduz a uma combinação desastrosa de comida tailandesa, álcool e um arsenal de medicamentos prescritos pela dra. Turttle, uma das psicólogas mais irresponsáveis da literatura mundial. A médica receita os remédios que causam “apagões” na personagem, entre eles o “infermiterol”, uma droga inventada pela própria autora que permite um sono profundo de três dias. As sessões de análise divertem o leitor com os momentos mais absurdos e cômicos do livro. Quando a narradora revela que a mãe morreu ao misturar álcool com sedativos, por exemplo, a dr. Turttle, sem nenhuma cerimônia, responde que “é por pessoas como a sua mãe que a medicação psicotrópica fica com má reputação”.
Entre uma droga e outra, a narradora investe o seu tempo em fitas VHS, especialmente os filmes dos anos 1980 com a atriz Whoopi Goldberg, por quem nutre uma idolatria quase infantil. Nota-se, inclusive, que as interpretações de Whoopi funcionam como termômetro dos humores da protagonista.
“Sempre que aparecia na tela, sentia que ela estava rindo daquilo tudo. Sua presença fazia o episódio inteiro ficar absurdo. Isso acontecia em todos os filmes dela. Aonde quer que ela fosse, tudo ao seu redor se tornava uma paródia, desajeitada e ridícula. Era um conforto ver aquilo. Obrigada, Deus, por ter nos presenteado com a Whoopi. Nada era sagrado, Whoopi era a prova.”
A narradora recebe constantemente a visita indesejável de sua amiga Reva, uma mulher bulímica, invejosa, viciada em cosméticos, jejum, livros de autoajuda, produtos diet e “Sex and the City”. O desprezo da protagonista pela vida plástica da amiga é cristalino, mas Reva representa, em última instância, uma espécie de ponte para o mundo exterior. A narrativa é na maior parte do tempo ambientada dentro do apartamento, o que direciona um olhar mais cauteloso aos objetos da casa. O cesto de lixo, assim como Reva, também assume lugar central para conectar a protagonista ao resto do mundo.
“Levei o lixo para o corredor e o atirei na boca coletora. Ter uma boca coletora de lixo era uma das coisas que eu mais gostava naquele prédio. Eu me sentia importante, como se estivesse participando do mundo. Meu lixo misturado com o lixo dos outros. As coisas que toquei tocadas por outras pessoas. Eu estava colaborando. Estava me conectando.”
A alienação voluntária da jovem remete constantemente a Bartlebly. Assim como o escrivão eternizado por Herman Melville “preferia não fazer” os seus deveres numa forma de protesto solitário, a narradora de “Meu Ano de Descanso e Relaxamento” também mergulha numa autonegação muito consciente e, portanto, digna. A decisão excêntrica da protagonista funciona como reflexo de tudo o que parece impossível de lidar naquele momento. O “dormir para esquecer os problemas” é conduzido até as últimas consequências para comprovar que a invisibilidade pode custar caro.