Não foi por mero acaso que Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, Lúcio Cardoso, Ferreira Gullar, Vinicius de Moraes, Chico Buarque de Hollanda, Tom Jobim, Heitor Villa-Lobos, João Gilberto, Maria Bethânia, Dorival Caymmi, Cazuza, Renato Russo e quase todo o cânone poético-literário-musical de ontem, hoje e agora escolheram o Rio de Janeiro, e não São Paulo, como sua morada. Não listei aqui os artistas plásticos e arquitetos. Listas são sempre enfadonhas se extensas por demais.
Sou um cidadão paulistano, mesmo não tendo nascido aqui. Faz cinco anos apenas que fiz da cidade locomotiva a minha morada, mas sim, tornei-me um cidadão paulistano. Meu senso de pertencimento é aqui, nesta terra fria e impessoal, por razões do coração que nunca sabemos explicar; é aqui que me sinto em casa, na minha terra, no meu lugar. Fora da megalópole, se me perguntam de onde venho, sai do coração, e não da cabeça: “São Paulo”.
Sim, cidadão paulistano — aqui trabalho, aqui leio e escrevo, aqui estudo, aqui aprendi e aprendo (como não aprenderia em nenhum lugar do Brasil), aqui luto e lutei; vivi um duro e doloroso luto materno. Foi em meio ao barulho da Avenida Brigadeiro Faria Lima que recebi o telefonema mais duro de minha vida, anunciando a morte de minha mãe. Por consequência, conhecia um pouco também de uma morte em vida. Talvez seja uma boa definição para o luto: morremos, por um tempo, junto com quem amamos.
Eu não apenas morei e moro em São Paulo: vivi e vivo a cidade em sua carnadura de pedra, suas avenidas largas e mesmo assim inexplicavelmente engarrafadas — engarrafadas, não: intransitáveis, proibitivas à locomoção, a ponto de fazer seus cidadãos desistirem de ir a tal ou qual lugar, aceitarem tal ou qual trabalho dependendo da a distância a se percorrer entre um ponto e outro da cidade.
Não é medo da dificuldade. Em São Paulo e em seu bravo, assertivo, forte e resistente povo, o que não se tem é medo, preguiça ou insegurança: o paulistano tem de sobra, como nenhum outro povo que conheci na vida, força e coragem; ousadia e personalidade; rigidez e responsabilidade: só um tolo não vê isso.
O que leva à desistência na locomoção, nos destinos a se percorrer, no ir e vir, é a materialidade da impossibilidade: não há como chegar porque o tempo, os minutos, as horas não levam em conta a aspereza de São Paulo, sua exigência férrea, seu ar pesado, seu horizonte cinza, sua paisagem infrutuosa, seu cotidiano inóspito, sua aglomeração desumana, seu caos organizado: impossível que uma região metropolitana que ultrapassa os 20 milhões de pessoas seja organizada. O máximo a se fazer, resignada, porém bravamente, como fazem os paulistanos todos os dias, é organizar o caos e dar a ele uma rotina: não é salutar gastar cinco horas do seu dia no trânsito. Mas se assim é, assim se faz, sem reclamar. Se a multidão é incontável, filas podem dirimir, mas não eliminar o problema. Paulistanos são famosos por fazerem filas ou nelas entrarem e só depois procurarem saber a que se destinam.
Para ser turista, não tenho dúvida: se o sujeito é um pouco inteligente, se dotado for de algum bom gosto; se tem o paladar educado à percepção do que beira a perfeição; se é exigente na prestação dos serviços pelos quais paga preços insanos, São Paulo é a melhor cidade do Brasil. Mas para morar, fazer dela sua casa, algo que se chama de lar, é o pior lugar do mundo.
Em São Paulo tudo é para ontem. Aqui, o agora já é tarde. Pontualmente já é atraso. O perfeito tem falhas, pois alguém sempre poderia ter feito melhor. A exigência é gratuita, porque o que era para ser feito, mesmo feito, é cobrado diante da coisa feita, acabada, inteira. Claro. Outro poderia ter feito melhor, mais rápido, e avançado em inventividade no ato de fazer.
Não há cidadãos. São 12 milhões de funcionários que não trabalham para viver, mas vivem para trabalhar e esperar as férias, gozadas no exterior, em sua maioria, pela gigantesca classe média que pode pagar: paulistanos não tem curiosidade pelo Brasil, pois sentem e sabem: vivem em um país particular, que de Brasil tudo e nada tem ao mesmo tempo, em todo canto, todo bairro. Como diria Caetano Veloso, escrevendo do Rio: “São Paulo é como um mundo todo”.
Só a poesia concreta, que se supôs matematicamente realizável, haveria de ser concebida em São Paulo. E não foi. Só mesmo os versos duros de Mário de Andrade — que dizia amar com ódio a cidade que cantou como nenhum outro poeta conseguiu cantar — foram possíveis de cá serem feitos. Só aqui a ousadia que beira a deselegância de um Oswald de Andrade seria vista como inventividade e não insanidade. Só aqui o clássico Theatro Municipal seria cenário para a semana do anticlássico.
Em São Paulo, não há espaço — e nem tempo — para paredes com retratos de Itabira, quanto mais para meditações poéticas diante de tais espaços e retratos: não há tempo para recordar. Não há boêmia lerda e sôfrega, informal e sem pressa para Pasárgadas: sem tempo para sonhar. Sem espaço para o espaço: tudo ocupado está. Não há espaço para a respiração poética em São Paulo, só para romances que miram, à distância, para si mesmos, em autoficções pouco inventivas, restritamente criativas, longínquas dos requebros linguísticos de João Guimarães Rosa ou da secura poética de um Graciliano Ramos e dos enigmas de Clarice Lispector. Claro, Lygia Fagundes Telles está aqui, mas sempre cortejada — e gostando de ser cortejada — pelos colegas do Rio que a laurearam na Academia Brasileira de Letras.
Aqui, na cidade das madrugadas-rondas que terminam em assassinatos na Avenida São João, romances são pensados como maquinarias de rocamboles folclóricos, escritos em 30 dias, e têm um ar forçado, quase monográfico, alçado à condição de monumento literário, enquanto se parece mais com um tratado antropológico. Jamais um “Casa Grande e Senzala” seria feito ao som das buzinas infernais das motocicletas que costuram um trânsito desordenado e selvagem. São Paulo é dura. De ferro.
Toleima pensar que essa geografia inóspita não atinge e contamina a sensibilidade de quem aqui vive. Toleima pensar que essa angústia de asfalto quente, mesmo quando úmido de garoa, seria terreno fértil para a sensibilidade desigual da poesia de Carlos Drummond de Andrade ou da música de Tom Jobim, do cantar de João Gilberto, da voz de Maria Bethânia, do milagre de Nara Leão, do sorriso de Vinicius de Moraes, das curvas de Oscar Niemeyer, das traduções humanas de Ferreira Gullar, resistentes graças ao sal do mar vislumbrado de uma janela de Ipanema, na América Latina.
Toleima pensar que a melodia de “Futuros amantes”, de Chico Buarque, surgiria das águas fétidas e quase sólidas do Tietê e não das águas que quebram nas pedras do Arpoador.
Por outro lado, toleima pensar que mentes racionais, hábeis e assertivas como as do mestre dos mestres, Antonio Candido, brotaria como um milagre da inteligência em outro ambiente menos exigente que o de São Paulo; os irmãos Campos, Davi Arrigucci Jr., Boris Fausto, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes — e os de hoje —, Philippe Willemart, Jorge de Almeida, Sandra Vasconcelos, Sandra Nitrini, José Miguel Wisnik, Alcides Villaça, Milton Santos, Roberto Schwarz, Marcus Vinicius Mazzari, Marilena Chauí, Alfredo Bosi, Yuri Cerqueira dos Anjos, Renato Janine Ribeiro e tantos outros: essa secura é fértil para essas inteligências hábeis e estranhas, poderosas e resistentes. Talvez apenas em São Paulo se poderiam conceber interpretações, traduções, ensaios de envergadura internacional tão ousados do que, curiosamente, foi produzido em sua maioria ao som do mar do Rio de Janeiro, como fez Schwarz, o maior intérprete do carioquíssimo Machado de Assis, o maior brasileiro que já existiu.
O Rio também tem seus medalhões intelectuais. Otto Maria Carpeaux por si só dá conta do recado e faz do Rio um cérebro brasileiro de respeito e envergadura universais. Mas chega de listas. O fato é: a cidade para se fazer arte, no Brasil, foi, é e continua sendo o Rio de Janeiro. Palavra de quem viveu. De quem vive, experimentou e experimenta as duas cidades quase ao mesmo tempo.
Viver na ponte aérea é uma experiência excêntrica: uma metamorfose acontece entre os aeroportos de Santos Dumont e Congonhas. No caminho contrário, a metamorfose se desfaz. Ou se refaz, ou se mistura e nos tornamos, como disse Cazuza, “brasileiros”.
É como se o Rio fosse o coração e São Paulo, o cérebro.
Isso, claro, é uma simplificação. Esse texto é reducionista ao extremo. Reduz um país enorme, diverso, plural e lindamente colorido ao eixo Rio-São Paulo, eixo que setorizou e (mal) distribuiu o desenvolvimento pelo Brasil; mas a metáfora geográfica, se nos permitirmos falar sem pensar muito — por um instante só, nesse momento em que o politicamente correto é tão necessário —, não temos como negar: não existe amor em SP, mas no Rio ele transborda.