O demônio “Tranca-Rua da Palavra” afeta a parte cognitiva do cérebro humano e impede a pessoa de conjugar verbos ou cantar palavras que tenham mais de uma sílaba. Foi graças ao “Tranca-Rua da Palavra”, filho da “Pomba Gira dos Monossílabos”, que surgiu o “sertanejo universitário”
A Elayne encontrou o Adauto no corredor da repartição. Apesar de trabalharem em setores próximos, pouco se viam. A Elayne era muito reservada e quase nunca saía da sua sala. Com o tempo, aqueles encontros “casuais” se tornaram mais frequentes. Já a Elayne ia a observar o Adauto com outros olhos. No início, julgava-o estranho, com os cabelos rareando na cabeça e a camisa de botão preta, sempre preta, como se tivesse comprado várias delas numa liquidação de shopping. Mas entre um olhar e outro, um copo d’água e outro na copa, trocavam umas palavras. Era quando ele sorria para ela com a boca grande, os dentes perfeitamente brancos. Elayne derretia-se. Logo se apaixonou.
O problema é que ela nada sabia sobre o Adauto. Ele nunca haviam conversado sobre coisas pessoais. Nem uma palavra sobre família, sobre onde morava, nem mesmo sobre o colégio em que estudaram na infância. Tudo o que Elayne sabia era que o Adauto tinha passado no concurso e vindo de outro Estado. Mas quando se viu apaixonada, preocupou-se. Afinal, quem seria aquele colega de trabalho tão misterioso?
Como a Elayne era uma mulher muito religiosa, do tipo que frequentava o culto todos os sábados, pagava dízimo ao pastor e lia salmos bíblicos antes de dormir, quis logo desvendar aquele que, segundo supunha, era o maior dos mistérios que o Adauto poderia esconder: a sua religião. “Se for católico, não namoro; vai dar problema em casa”, ela pensou. Mas seu maior medo era que ele, com aquelas roupas pretas, com aquele jeitão de roqueiro, fosse ateu. “Meu Deus, eu não posso namorar um ateu! A bíblia diz que o ímpio está condenado ao inferno! O que o pastor vai dizer? E as virtudes teologais?”
Mas Elayne tinha coragem. A coragem que só tem quem está apaixonado. Assim, mesmo aturdida por esse rodamoinho de pensamentos confusos, mesmo temerosa de que pudesse vir a decepcionar-se, estava decidida a esclarecer a dúvida. Gostasse ou não, ela precisava saber a religião do rapaz por quem se deixara enamorar.
Naquele mesmo dia, como de costume, encontraram-se no corredor durante o horário de expediente.
— Oi Adauto.
— Olá Elayne.
— Posso te fazer uma pergunta?
— Contanto que não envolva dinheiro, pode sim — ele brincou.
— É que estou com uma dúvida.
— Pois diga.
— Qual é a tua religião?
Ao ouvir a pergunta, Adauto vacilou. Coloco as mãos no queixo. Parecia pensativo por alguns instantes. Depois, como se tivesse tido uma ideia que o alegrou, pôs-se a responder:
— Minha religião é o rock n’ roll.
— Como?
— É isso mesmo que tu ouviste. Minha religião é o rock.
Elayne, que já desconfiava pelas roupas pretas que ele era roqueiro, não demonstrou grande surpresa. Na verdade, até ficou aliviada por saber que ele não era ateu. “Pelo menos ele tem religião”, ela pensou numa fração de segundos, a rir invisivelmente. Então, intuindo o tom zombeteiro da resposta, não se fez de rogada e emendou: — Ah é? Tua religião é o rock? Hum. Interessante. Nunca tinha ouvido falar que rock fosse a religião de alguém. Mas então me dizes: a tua religião tem igreja?
— Temos sim, Elayne. É a Igreja Universal do Reino do Rock.
— Igreja Universal do Reino do Rock?
— Isso mesmo.
— E o que se faz na Igreja Universal do Reino do Rock?
— Exorcismo. Fazemos exorcismo.
Ela esbugalhou os olhos. Exorcismo?
Adauto, ao perceber a expressão de incredulidade de Elayne, continuou.
— Olha, Elayne, na Igreja Universal do Reino do Rock, é tudo muito simples. Não existem princípios religiosos nem tábua com os dez mandamentos. Também não tem código canônico nem hierarquia eclesiástica. E com certeza ninguém paga dízimo ou guarda os sábados — ele riu sozinho. — E vou logo te adiantando que não faço a mínima ideia se existe algo parecido com as tais “virtudes teologais” de que tu sempre falas. Tudo o que fazemos nessa igreja é exorcizar o demônio do corpo.
Ela riu.
— E que demônios são esses que vocês, da Igreja Universal do Reino do Rock, exorcizam? — Elayne perguntou sorridente, a enfatizar propositalmente o nome do templo.
— Depende. Tem muitos demônios, dos mais variados tipos. Alguns são mais fortes. Outros mais fracos. No passado, tínhamos É o Tchan, Companhia do Pagode, Terra Samba, Harmonia do Samba, Art Popular com “O pimpolho”, As Meninas com “Xibom bombom”, Grupo Molejo com sua “Dança da vassoura”, Só Pra Contrariar, Katinguelê, Negritude Junior, Os Travessos, Babado Novo, Tiazinha e Vinny, P. O. Box com “Papo de jacaré”, Luka com “Tô nem aí” e vai embora. Eram demônios que se incorporavam com facilidade ao corpo de uma grande parcela da juventude brasileira, especialmente nos anos 90. Quase sempre eram demônios enviados por uma entidade maior e mais poderosa: o Exu de Axé — nosso maior inimigo e “rei dos abadás”, “senhor todo-poderoso das micaretas”. Felizmente hoje já exorcizamos todos esses demônios na Igreja.
— Amém.
— Calma. É cedo para comemorar. Ainda temos muito trabalho pela frente. O Exu de Axé continua forte. Existem ameaças do passado que ainda estão por aí infernizando os corpos e ouvidos humanos, como Chiclete com Banana, Asa de Águia e o cantor Latino. Além disso, o Exu de Axé, que não é bobo, quando se tocou que estava perdendo força graças ao pessoal da nossa igreja, tratou logo de reagir. Matou alguns de nossos santos, como o Raul Seixas, o Renato Russo, o Cazuza, a Cássia Eller. Depois ainda foi se aliar a uma entidade demoníaca mais poderosa, chamada “Pomba Gira dos Monossílabos”, que tem como principal avatar o demônio “Tranca-Rua da Palavra”.
— Hum. Não é que é interessante? Continua.
— Pois bem — disse ele, enquanto se posicionava junto ao bebedouro para pegar um copo d’água. — O demônio “Tranca-Rua da Palavra” afeta a parte cognitiva do cérebro humano e impede a pessoa de conjugar verbos ou cantar palavras que tenham mais de uma sílaba. Foi graças ao “Tranca-Rua da Palavra”, filho da “Pomba Gira dos Monossílabos”, que surgiu o “sertanejo universitário”. Hoje é possível ver muitos jovens brasileiros possuídos por essa nova ameaça. Basta olhar a plateia de shows de duplas como Munhoz & Mariano, Guilherme & Santiago, Jorge & Mateus, além de Luan Santana, o seu genérico Gusttavo Lima, até a Paula Fernandes! Ali está todo mundo endemoninhado.
— Sabias que eu nunca tinha pensado nisso — confessou Elayne, surpresa com a própria confissão.
— Muitas pessoas ignoram isso. É normal. As entidades estão todas aí, firmes e fortes, cada vez mais. Pra piorar, de vez em quando novos demônios surgem. É o caso da Anitta e a feitiçaria do “show das poderosas”. E no carnaval todo mundo viu o que o “Lepo, Lepo”, do Psirico, o popular demônio da histrionice, foi capaz de fazer com o corpo das pessoas. Que vergonha ver alguém dançando daquela maneira! Aquela coreografia ridícula! Só estando possuído!
Adauto tomou seu copo d’água. Fez uma pausa. Refletiu um pouco. Finalmente prosseguiu com um ar frustrado.
— Mas é pena, Elayne, que nossa maior inimiga ainda não conseguimos derrotar.
— Quem é?
— A “Rainha Zumbi”.
— “Rainha Zumbi?”, repetiu Elayne já um pouco assustada.
— Sim. Ela é conhecida pela maioria das pessoas como Ivete Sangalo. Mas a verdade é que se trata de um demônio raro, dono de uma habilidade poderosíssima, que é a de hipnotizar os ouvidos. Quase a conseguimos eliminar na época da Banda Eva, mas ela é muito forte e escapou para fazer carreira solo. Aí a coisa piorou de vez. Com o apoio do governo e da Globo, ela se tornou a cantora mais famosa do País. Está em todo lugar. De trilha sonora de novela a festa agropecuária, de micareta de carnaval a especial de fim de ano do Roberto Carlos, só dá ela. Uma praga pros ouvidos! O demônio Ivete Sangalo é o responsável por possuir o corpo de milhares de brasileiros com aberrações auditivas como “Levada louca”, “Poeira”, “Carro velho”, “Acelera aê”, “Qui belê” e “Pomba suja”. Ela não nos deixa em paz! E ainda invocou uma entidade irmã-genérica: Cláudia Leitte, que canta coisas como “Largadinho”, “Me pega de jeito”, “Pancadão frenético”, “Claudinha bagunceira”, “Reboladinha”, “Dia da farra e do beijo” e “Segura na corda do caranguejo”. Sinto tanta pena do caranguejo. Lá no seu manguezal ele não faz ideia da humilhação por que passa.
— E não é, Adauto? — ela concordou, a rir timidamente, enquanto se deixava apaixonar mais e mais pelo moço.
— Mas na igreja ninguém perde a esperança, Elayne. Estamos trabalhando duro pra exorcizar o corpo dos fiéis dessas ameaças. Porque só alguém possuído pelo demônio pra tolerar músicas tão ruins, feita por gente semianalfabeta e que seria reprovada facilmente em qualquer teste básico de musicalização em um conservatório. Felizmente, não há demônio que o som dum riff de guitarra não possa exorcizar!
— Amém!
E, em tom bastante entusiasmado, Adauto completou:
— Só o rock salva!
— Só o rock salva!
— Amém!
— Amém!
No dia seguinte, Elayne e Adauto saíram juntos pela primeira vez. Anos depois eles se casariam numa cerimônia inesquecível na Igreja Universal do Reino do Rock. Com muitos riffs de guitarra, é claro.