Aviso: contém spoiler. Primeiro veja o filme, depois leia o texto. Não tem jeito de falar do novo Quentin Tarantino sem entregar o final, que justifica a trama inteira.
No fundo, os protagonistas Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e Cliff Booth (Brad Pitt) são dois velhos cowboys em busca de redenção. O primeiro é um ator que já teve dias melhores na carreira. O segundo é o melhor amigo dele e também seu dublê exclusivo. O filme é um olhar nostálgico ao cinema e à TV dos anos 60, mas a trama é movida pela reação dos dois personagens — já meio ultrapassados — a um mundo em acelerada transformação.
Os dois me lembraram muito os anti-heróis de “Meu Ódio Será Tua Herança (The Wild Bunch)”, de Sam Peckinpah, que — olha só — foi lançado exatamente em 1969, ano em que se passa o filme de Tarantino. Na produção de Peckinpah, o velho oeste agoniza e é substituído por ferrovias e telégrafos. No filme de Tarantino, a velha Hollywood dos seriados de western também agoniza, enquanto é invadida por hippies e pela guerra do Vietnã.
1969 não foi um ano qualquer. Os crimes do Zodíaco acontecem neste ano, assim como a conquista da Lua e o massacre promovido pelo culto de Charles Manson. A década de 70 já estava batendo à porta e, com ela, acabariam os filmes de Matt Helm e os seriados inocentes e ingênuos. O cinema e a TV passariam os próximos anos investindo em tramas engajadas e cheias de culpa, exorcizando Watergate e Vietnã.
O mundo de Dalton e Booth está sob ameaça. Os hippies de Charles Manson são os novos peles-vermelhas a sitiar uma América wasp suburbana que está com os dias contados.
É disso que o filme trata: da inevitável invasão de bárbaros que vai arrasar a civilização de Bonanza, Batman e Robin, Dean Martin e Rick Dalton. O assassinato da doce e inocente Sharon Tate é o rito de passagem que marca o fim de uma era.
E é por isso que Quentin Tarantino filma Cliff Booth encarando a gangue de Manson no rancho como se fosse um western. Porque “é” um western. A surra que o arrogante Bruce Lee toma de Cliff em outro momento espelha o mesmo sentimento e antecipa o final: estamos num universo paralelo. E nesta realidade alternativa, os velhos cowboys sempre vencem.
O que Booth e Dalton querem é conter as mudanças do mundo, estancar a roda do tempo, parar de envelhecer, jamais sair de cena e manter tudo exatamente como sempre foi. Mas isso é impossível. Em 1969, enquanto Peckinpah fazia seu “Wild Bunch”, Peter Fonda e Dennis Hopper enchiam o rabo de dinheiro com “Sem Destino” (Easy Rider). O mundo já era outro e Hollywood também.
Quando, no final, os velhos cowboys Rick e Cliff levam a melhor contra os peles-vermelhas de Charles Manson e salvam Sharon Tate, eles estão é preservando a civilização dos bárbaros invasores, sejam hippies ou chineses.
Sim, o filme é reacionário. Reacionário, porém charmoso e adorável. Adorável como uma tirinha de Al Capp, o genial criador do Ferdinando, sacaneando os hippies. Charmoso como Frank Sinatra inventando o Rat Pack para tirar sarro dos cabeludos de Liverpool. Em “Meia-Noite em Paris”, Woody Allen recusa a nostalgia, que percebe como fuga. Em “Era uma vez em Hollywood”, Tarantino casa com ela. Este é o mais doce e o mais melancólico dos filmes do diretor.
Pois é, o cara está envelhecendo. Ele não é mais o enfant terrible de Hollywood e isso deve doer bastante. Tudo muda. Tudo é uma montanha russa. Tudo é “helter skelter”, como acreditava Charles Manson. Mas enquanto existir cinema, sempre será possível salvar a mocinha e inventar um final feliz. Tarantino, em outras palavras, é muito romântico.