Nas últimas décadas, a noção de paternidade tem se modificado visivelmente. Velhos paradigmas foram quebrados e hoje o pai não é mais apenas a figura de um provedor detentor de autoridade, mas também um dos protagonistas no desenvolvimento moral, psicológico e afetivo de toda a família. Mas, a verdade é que, independentemente da época, as relações entre pais e filhos sempre serviram de inspiração para grandes escritores. Mr. Bennet, o patriarca em “Orgulho e Preconceito” (1813), de Jane Austen, foi transgressor ao incentivar o espírito destemido de sua filha, Elizabeth; enquanto o advogado Atticus Finch, em “O Sol é Para Todos” (1960), de Harper Lee; se tornou um herói mundial ao ter sua história narrada pela filha, Jem, que mostrou a coragem do jurista ao defender a dignidade das pessoas negras em um país dividido pelo racismo. E, assim como na ficção, a poesia também possui belos exemplos de paternidade. A Revista Bula reuniu dez poemas de grandes autores, como Pablo Neruda e Carlos Drummond de Andrade, que homenagearam a vivência e a sabedoria dos pais.
Carlos Edu Bernardes
Meu pai tem Alzheimer
e todo dia me pergunta
que dia é hoje.
Eu digo que é Dia dos Pais
e tasco-lhe mais um abraço.
Mario Quintana
As tuas mãos têm grossas veias
como cordas azuis
sobre um fundo de manchas
já da cor da terra
— como são belas as tuas mãos
pelo quanto lidaram, acariciaram
ou fremiram da nobre cólera dos justos…
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai,
essa beleza que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam
nos braços da tua cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas…
Virá dessa chama que pouco a pouco,
longamente, vieste alimentando
na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos
e tenta acendê-los contra o vento?
Ah, como os fizeste arder, fulgir,
com o milagre das tuas mãos!
E é, ainda, a vida que transfigura
as tuas mãos nodosas…
essa chama de vida —
que transcende a própria vida…
e que os Anjos, um dia,
chamarão de alma.
Ferreira Gullar
no dia de
finados ele foi
ao cemitério
porque era o único
lugar do mundo onde
podia estar
perto do filho mas
diante daquele
bloco negro
de pedra
impenetrável
entendeu
que nunca mais
poderia alcançá-lo
Então
apanhou do chão um
pedaço amarrotado
de papel escreveu
eu te amo filho
pôs em cima do
mármore sob uma
flor
e saiu
soluçando
Manoel de Barros
Abro os olhos.
Não vejo mais meu pai.
Não ouço mais a voz de meu pai.
Estou só. Estou simples.
Não como essa poderosa
voz da terra
com que me estás chamando, pai —
porque as cores se misturam
em teu filho ainda
e a nudez e o despojamento
não se fizeram em seu canto;
mas, simples por só acreditar
que com meus passos incertos
eu governo a manhã
feito os bandos de andorinha
nas frondes do ingazeiro.
Carlos Drummond de Andrade
O Pai se escreve sempre com P grande
em letras de respeito e de tremor
se é Pai da gente. E Mãe, com M grande.
O Pai é imenso. A Mãe, pouco menor.
Com ela, sim, me entendo bem melhor:
Mãe é muito mais fácil de enganar.
(Razão, eu sei, de mais aberto amor.)
Adélia Prado
Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo
moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.
Edival Lourenço
Oh! Fluida infância! Pátria faz-de-conta!
Pobre de coisas com riqueza d’alma:
palhoça, vento, verde, aves e calma
para fruir a vida em toda monta.
Aquele ano choveu além da conta
e abriu-se um olho d’água em nossa casa
que meu pai ajudou, com fina vaza,
fazer o arroio: do Araguaia ponta.
Encanta-me o sentido que propala.
Maior riqueza, sei, ninguém encontra:
o nascente Araguaia nos escala.
A vida tem o rio a inspirá-la:
mereja, empoça, entorna, enfim desponta
promissora qual jorro de olho d’água!
Meu pai,
dá-me os teus velhos sapatos
manchados de terra
dá-me o teu antigo paletó
sujo de ventos e de chuvas
dá-me o imemorial chapéu
com que cobrias a tua paciência
e os misteriosos papéis
em que teus versos inscreveste.
meu pai,
dá-me a tua pequena
chave das grandes portas
dá-me a tua lamparina de rolha,
estranha bailarina das insônias
meu pai, dá-me os teus velhos sapatos.
Pablo Neruda
Terra de semeadura inculta e brava,
terra que não tem estreitos nem sendas,
minha vida sob o sol treme e alarga.
Pai, os teus olhos doces nada podem,
como nada puderam as estrelas
que me abrasam os olhos e as fontes.
O mal de amor cegou a minha vista
e nesta fonte doce do meu sonho
refletiu-se outra água estremecida.
Depois… Pergunta a Deus por que me deram
o que me deram e por que depois
soube da solidão de terra e céu.
Olha, minha juventude foi broto
puro que ficou sem abrir, perdeu
sua doçura de sangues e de sucos.
O sol que cai e cai eternamente
cansou-se de beijá-la… E sendo outono,
Pai, os teus olhos na podem.
Escutarei na noite tuas palavras:
menino, meu menino…
e na noite imensa seguirei
com as minhas e as tuas chagas.