Mesmo que o ano esteja longe do fim, predomina a sensação de que 2019 já acabou, devido às tragédias que ocorreram no Brasil. Os dias parecem ser poucos para tanta informação. A morte de importantes personalidades, os desastres ambientais, os ataques nas redes sociais e as contrariedades na política são apenas algumas das manchetes que mais circulam no país. Além disso, o crescimento de movimentos extremistas tem mostrado que a sociedade provavelmente não aprendeu com a história e está voltando a flertar com o fascismo. Diante de tantos acontecimentos, é surpreendente que escritores de décadas ou séculos atrás tenham retratado exatamente o que estamos passando hoje, em 2019. Grandes nomes da literatura, como George Orwell, Guimarães Rosa e John Donne, viveram em outras épocas, mas tiveram uma profunda compreensão da natureza humana, de forma que seus pensamentos continuam atuais. Por meio dos escritos desses e de outros importantes autores, a Revista Bula elencou 15 trechos de livros que descortinam o Brasil de 2019.
(Primo Levi, É Isto Um Homem)
Os monstros existem, mas eles são muito pouco numerosos para serem realmente perigosos; os mais perigosos são os homens comuns, os funcionários dispostos a crer e obedecer sem questionar.
(George Orwell, A Revolução dos Bichos)
Vozes gritavam, cheias de ódio, e eram todos iguais. Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco (…) mas já se tornara impossível distinguir, quem era homem, quem era porco.
(Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere)
Desviava-me dessas chateações próximas, refugiava-me noutras distantes. Num mundo assim, que futuro nos reservariam? Provavelmente não havia lugar para nós, éramos fantasmas, rolaríamos de cárcere em cárcere, findaríamos num campo de concentração. Nenhuma utilidade representávamos na ordem nova. Se nos largassem, vagaríamos tristes, inofensivos e desocupados, farrapos vivos, velos prematuros; desejaríamos enlouquecer, recolher-nos ao hospício ou ter coragem de amarrar uma corda ao pescoço e dar o mergulho decisivo. Essas ideias, repetidas, vexavam-me; tanto me embrenhara nelas que me sentia inteiramente perdido.
(Carlos Drummond de Andrade, Lira Itabirana)
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
A dívida eterna (…)
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
(Max Horkheimer e Theodor Adorno, Dialética do Esclarecimento)
Não é fácil falar (…) Quando o outro toma a palavra, ele reage interrompendo-o com insolência. Ele é inacessível à razão porque só a enxerga na capitulação do outro.
(Martin Niemöller, E Não Sobrou Ninguém…)
Um dia, vieram e levaram meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram. Já não havia mais ninguém para reclamar.
(Nelson Rodrigues, Crônicas)
Antes, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: — ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina.
(Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)
Viver é muito perigoso (…) Deus mesmo, quando vier, que venha armado!
(John Donne, Meditações)
Nenhum homem é uma ilha; cada homem é uma partícula (…) A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.
(Eduardo Alves da Costa, No Caminho, com Maiakóvski)
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
(Anne Frank, O Diário de Anne Frank)
É difícil em tempos como estes: ideais, sonhos e esperanças permanecerem dentro de nós, sendo esmagados pela dura realidade. É um milagre eu não ter abandonado todos os meus ideais, eles parecem tão absurdos e impraticáveis. No entanto, eu me apego a eles, porque eu ainda acredito, apesar de tudo, que as pessoas são realmente boas de coração.
(Hermann Hesse, Demian)
Não creio que se possam considerar homens todos esses bípedes que caminham pelas ruas, simplesmente porque andam eretos ou levem nove meses para vir à luz. Sabes muito bem que muitos deles não passam de peixes ou de ovelhas, vermes ou sanguessugas, formigas ou vespas.
(Bertold Brecht, Intermezzo)
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
(Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo)
Num mundo incompreensível e em perpétua mudança, as massas haviam chegado a um ponto em que, ao mesmo tempo, acreditavam em tudo e em nada, julgavam que tudo era possível e que nada era verdadeiro. A própria mistura, por si, já era bastante notável, pois significava o fim da ilusão de que a credulidade fosse fraqueza de gente primitiva e ingênua, e que o cinismo fosse o vício superior dos espíritos refinados. A propaganda de massa descobriu que o seu público estava sempre disposto a acreditar no pior, por mais absurdo que fosse, sem objetar contra o fato de ser enganado, uma vez que achava que toda afirmação, afinal de contas, não passava de mentira. Os líderes totalitários basearam a sua propaganda no pressuposto psicológico correto de que, em tais condições, era possível fazer com que as pessoas acreditassem nas mais fantásticas afirmações em determinado dia, na certeza de que, se recebessem no dia seguinte a prova irrefutável da sua inverdade, apelariam para o cinismo; em lugar de abandonarem os líderes que lhes haviam mentido, diriam que sempre souberam que a afirmação era falsa, e admirariam os líderes pela grande esperteza tática.