O filme “O Rei Leão” possui um enredo bastante debatido e venerado. Talvez uma das maiores e melhores produções da história da Disney, traduz um roteiro profundo, complexo, inspirado em Hamlet e com peculiaridades do mundo animal que se condensam em uma épica e inesquecível aventura. Porém, a tragédia em torno da qual gira o filme esconde nuances que podem passar despercebidas, obscurecida que está por detrás das belas canções e dos ares de fábula.
O Sol nasce, ao longe, com nuvens esparsas e escuras, que vão clareando à medida que a manhã avança. Alguns animais percebem o brilhantismo do momento e namoram o horizonte. Surgem os inconfundíveis gritos em língua zulu: “nants ingonyama bagithi baba”. Os animais, agora aos montes, saem da imobilidade, com destino instintivo certo. No alto da pedra do reino, o rei Mufasa surge imponente. O mandril Rafiki, empunhando seu cajado, aproxima-se da leoa Sarabi, a rainha, quebrando um fruto e passando o líquido vermelho que ele continha na testa do pequenino Simba. O babuíno o carrega, chega à beira da pedra e o levanta em direção ao céu, para delírio dos animais presentes. É o círculo infinito da vida, cena das mais icônicas e copiadas do cinema.
A beleza da película e sua história impressionam pela riqueza de detalhes, qualificadas por uma preciosa trilha sonora muitas vezes entoada pelas próprias personagens. A sensação de proximidade com cada um dos representados na trama é tanta que dificulta saber de fato quem seria o coadjuvante. A harmonia do mundo feérico, contudo, é quebrada ainda no começo do enredo pelo antagonista declarado, o leão renegado Scar, que em conjunto com as hienas das sombras, conspira para abalar a paz do reino. E aí residem as dúvidas sobre a realidade do recorte temporal demonstrado, deixando no ar um ponto de vista mais complicado sobre a insatisfação desses marginalizados. Seria o rei Mufasa na verdade um déspota, de personalidade amenizada pelo romantismo do enfoque?
Ao longo da história, o rei Mufasa é construído como exemplar, sábio, corajoso, protetor, com senso de justiça, digno e, principalmente, paternal. No desenrolar dos acontecimentos, com os constantes conselhos dados a seu filho e futuro dono da coroa, há a demonstração de um cenário de prevalência do direito divino do rei, magnífico e detentor da soberania local. Mufasa, em um diálogo sobre o firmamento, afirma que ao morrer os reis se tornam estrelas no céu e protegem o reinado ao longo dos tempos. Os outros animais, pelo contrário, seriam apenas súditos dominados, cuja sorte metafísica dependeria da consciência benevolente de Sua Majestade. O rei seria o senhor de tudo que o sol toca. Na verdade, quase tudo.
Um dos locais vistos como proibidos seria justamente o da penumbra. Vista do alto, seria a região desprovida da bênção da luz solar, um jogo sinestésico de luzes e sombras como o abismo escuro da Judeca, último círculo do inferno descrito por Dante Alighieri na “Divina Comédia”. Ambiente, pois, destinado a abrigar traidores e pecadores. Apesar do discurso de conexão entre todos os animais, Mufasa explica que o local deveria ser evitado. Assim, há uma periferia de degredados que o direito às benesses do reino não alcança. As hienas passam fome, não podem caçar e estão em constante luta com os leões pelo direito de existir. Apenas Scar convive com elas; ele é, para todos os efeitos, igual a elas. Apesar do sangue real, foi preterido na sucessão e vive nas sombras.
Na pauta de injúrias latentes, surge em Scar a ideia de matar o rei e assumir o trono. Ele deixa claro que a vida não é justa, pois alguns nascem para banquetes enquanto outros convivem com as trevas, implorando por migalhas, tal qual ele e as hienas. Existe em Scar um sentimento de inveja, fustigado pela sua própria condição e pela incompreensão do posto de Mufasa, como no “Gênesis”, onde Caim mata Abel após sua oferta ao Senhor ser preterida pela do irmão. Scar é consciente de que o reino possui regras antinaturais devido à visão do rei. Seu discurso oferece aos companheiros de escuridão a saída da marginalização e o direito aos banquetes que todos os outros têm sob a lei da natureza. É a mesma liberdade vingativa que Bane oferece ao povo em “Batman, o Cavaleiro das Sombras”.
A todo instante Scar tenta conduzir Simba para a morte, mas Mufasa sempre aparece para protegê-lo. Em mais de uma oportunidade, o tio tenta atiçar o pequeno herdeiro a entrar em locais inóspitos, confrontando perigos, até que o conduz ao desfiladeiro onde instiga uma manada de búfalos. No momento mais tenso do filme, uma inquietude: dentre todos os animais mostrados, os búfalos parecem ser os únicos irracionais e desprovidos de características humanizadas, não sendo capazes de conter seus instintos. Eles apenas correm. Seria essa, talvez, a representação de certas revoltas populares, que por vezes estouram sem propósito, tomando as ruas em um movimento orquestrado por idealizadores com propósitos escusos.
Ao salvar o filho, o rei acaba assassinado pelo irmão. Simba, cheio de culpa, foge do reino, e também é tido como morto. Scar assume o poder e democratiza as cercanias do reino, dando ao seu exército de hienas acesso a locais com comida e moradia, antes privilégio de poucos. Aqui é perceptível a fluidez da ideia de justiça, muito presente ao longo de “A República”, de Platão, nos diálogos descontraídos de Sócrates com os atenienses. O mundo justo de Mufasa causava impiedoso estigma nas hienas e em Scar, que têm na vilania uma reação ao cruel destino que lhes era reservado.
Apesar do apelo popular do nascimento de Simba, apenas um pequeno núcleo comparece ao funeral do rei — as leoas e Rafiki. Isso pode ser indicativo da falta de verdadeira legitimidade popular de Mufasa, diferentemente do que ocorre quando do falecimento de grandes líderes. Com o passar dos anos, o reino acaba enfrentando a escassez de comida e água, notadamente por causa da presença das hienas no reino, o que parece ser indicativo de que o acesso irrestrito aos bens sociais deva restar sempre concentrado a um pequeno nicho, para evitar o colapso de suprimentos: um controle que, exercido por um setor intelectual, permita apenas as migalhas aos marginalizados.
A passagem de amadurecimento de Simba gira em torno do conformismo que se deve ter frente aos grandes pesadelos da vida. A morte, mais uma vez próxima e representada por abutres no deserto, lhe é afastada por dois inusitados e abnegados animais, que buscam incutir em sua mente que o sentido da vida está na falta de propósito. Coisas ruins são inevitáveis; se o mundo vira as costas para alguém, é preciso virar as costas para o mundo, mudando o determinismo de um futuro lamentável através do esquecimento proposital dos acontecimentos passados. Diante dos problemas que a vida encerra, Hakuna Matata: uma vida de prazeres, na qual a felicidade se encontra na boemia e no desprendimento.
Um momento bastante representativo dessa filosofia de vida é o que mostra o significado das estrelas para Timão, Pumba e Simba. Enquanto Timão e Pumba buscam explicá-las de uma maneira racional e empírica, para Simba, conforme os ensinamentos de seu pai, elas seriam seus antepassados monarcas, eternamente cuidando dele e dos súditos, numa visão “leocentrista” e excludente das demais espécies. Seu protagonismo e retorno ao habitat natal só ocorrem após o reencontro com sua predestinada esposa — mantendo a tradição de casamentos planejados do reino — que o acorda para suas responsabilidades e lhe relata o estado calamitoso de seus domínios.
O final feliz é consolidado com o retorno ao status quo ante, em uma lição que remete à mitologia do rei Kworth e da invasão da hiena ao reino dos céus; afinal, Scar é um Thanatos, inimigo da convivência e filho da noite, devendo ser amarrado com laços de diamantes para neutralizar o perigo que representa.