É hora do rush. Se dependesse só de mim, já seria a happy-hour. “Try a little tenderness”, uma voz que não conheço canta ao rádio, enquanto eu dirijo pela cidade crepuscular — sem a ternura suficiente — a disputar o meu quinhão de asfalto com os outros motoristas. Enquanto aguardo a luz verde do semáforo, um motoqueiro avança com uma das pernas esticada, chuta o espelho retrovisor do meu carro, e foge. Penso em persegui-lo (confesso que pequei), fantasio passar com as rodas da minha máquina mortífera sobre ele, mas… Não. Não sou dublê de Stuntman Mike, o psicopata motorizado vivido pelo ator Kurt Russel em “À Prova de Morte”, de Quentin Tarantino.
A bonita canção de amor é interrompida subitamente para que a locutora aflita avise a todos que tenham ouvidos para ouvir que mais um terrível ato de desamor, uma atrocidade das mais deploráveis estreava nos noticiários nacionais: em plagas sulistas, um médico abdicara dos mais elementares preceitos hipocráticos para matar o próprio filho de 11 anos com uma injeção.
Sou um cinéfilo fantasioso, esperançoso, daqueles que ainda creem, um dia, a vida imitará a arte e todos os homens estarão pacificados, livres de todos os males, a festejarem a vitória do bem sobre o mal, como se os subúrbios assassinos fossem a Disneylândia. Eu já fiz de tudo, até mesmo trair as minhas convicções em prol dos finais felizes.
Tanto assim que, durante todo o tempo despendido para que uma velhinha com corcova atravessasse a extensa Avenida dos Porcos, na faixa de pedestres, apoiada no seu andador para lesionados, apupada por uma sinfonia de buzinas nervosas, xingamentos impublicáveis e lamúrias cínicas, aproveitei a pausa forçosa para listar nas costas de um bilhete de multa de trânsito o ranking dos 10 mais ardilosos vilões do cinema em todos os tempos, criaturas fictícias odiosas, assustadoras, abjetas, as quais seriam fichinhas, principiantes, amadoras, se comparadas à leva de celerados que infectam por aqui.
A claudicante senhora — que, além de tudo, por pura sorte, era surda — chegou em segurança ao outro lado da rua. Eu não. Eu me perdi em pensamentos até ser multado por obstruir o trânsito devido o excesso de tenacidade: em matéria de buscar compreender, ainda que em vão, os desvãos do comportamento humano, eu sempre fui um obstinado.
Tony Montana (“Scarface”, filme de Brian de Palma, 1983)
A cena em que Tony Montana (Al Pacino), um gangster recém-iniciado, assiste à tortura e morte de um comparsa por um algoz que utiliza uma motosserra dentro da banheira de um hotel barato, remete-me àquele Deputado Federal que se livrava da concorrência usando a mesma ferramenta de persuasão e castigo. Lembram-se dele?
Mr. Blonde (“Cães de Aluguel”, filme de Quentin Tarantino, 1992)
É muito perturbador segurar-se à cadeira do cinema, enquanto o criminoso Mr. Blonde (Michael Madsen) tortura um policial por pura diversão. Durante a ditadura militar brasileira, alguns eram exímios nisso. Só que, nesse caso, quem torturava era a polícia e o exército, tutelados pelo Estado. Há quem defenda que os militares devam retornar o quanto antes ao poder. Será mesmo?
Hans Landa (“Bastardos Inglórios”, filme de Quentin Tarantino, 2009)
Ao assistir a este que é o melhor filme de Tarantino, não há cristão que não deseje a miséria e o fim (se possível, doloroso) do malvadíssimo coronel alemão Hans Landa (Christoph Waltz). Guardadas as devidas proporções do ódio e do racismo que impregnam o cerne da sociedade, a cena inicial do filme, em que uma família assustada escondida sob o assoalho de uma casa é fuzilada impiedosamente pelos nazistas, faz lembrar a carnificina do Carandiru.
Max Cady (“Cabo do Medo”, filme de Martin Scorsese, 1991)
Tenho que admitir: este foi um dos filmes que mais me meteu medo. Nada comparável, é claro, à vida real, aos ataques diuturnos nas esquinas, aos estupros cotidianos. Se o diabo existe, se ele possui um rosto, este rosto é o de Max Cady, personagem brilhantemente interpretado por Robert De Niro, o meu ator predileto. Vai ser bom pra fingir que é mau assim lá em Hollywood, man!
Gaear Grimsrud (“Fargo”, filme dos irmãos Joel e Ethan Coen, 1996)
Sequestro é sempre um ofício de covardes. E, não raro, os covardes estressam-se, entram em conflito, ao ponto de se mutilarem ou de um liquidar com o outro. Gaear Grimsrud (Peter Stormare) é um criminoso obtuso, calado, perturbado e mau demais da conta. Tanto assim que ele mata, esquarteja e mói o comparsa num triturador de ração. A cena de Gaear enfiando a perna (com meia, sapato, joanete e tudo) do ex-amigo dentro da máquina, de tão absurda, chega a ser hilária. Uma crueldade tão abominável quanto a que teria sofrido Eliza Samudio, a moça que fora, supostamente, sequestrada, morta, esquartejada e atirada aos cães pelos seus algozes. Mundo cão é assim.
Tyler Durden (“Clube da Luta”, filme de David Fincher, 1999)
No excelente filme de David Fincher, o personagem vivido pelo bonitão Brad Pitt organiza e lidera um clube clandestino de truculentos de todas as matizes, cidadãos medíocres entediados, interessados em dar vazão às frustrações e ao vazio existencial pelo uso da porrada, da brutal pancadaria subterrânea em que uma das regras essenciais é bater sem dó até que o adversário desmaie. Parece ou não um encontro de torcidas organizadas do futebol brasileiro? Na melhor das hipóteses, um embate de MMA para curtir com a família.
Alex DeLarge (“Laranja Mecânica”, filme de Stanley Kubrick, 1971)
Demorei anos até reunir coragem suficiente para ver este filme. Nem precisava tanto tempo: a vida é muito pior. Alex (Malcolm McDowell) é o líder adolescente de uma gangue, aficionado pela violência. Capturado pelos homens da lei, passa por um estapafúrdio programa de recuperação para delinquentes juvenis — muito parecido com o insano método brasileiro — e, claro, não consegue se endireitar. Então, ele volta a semear maldade. Se dependesse da elite e da classe média hipócrita, o Congresso Nacional deveria baixar a maioridade penal, e a polícia baixar o cacete nos moleques, quem sabe até, exterminá-los, enterrá-los em pé para não ocuparem muito espaço, nem poluir o lençol freático das cidades.
John Ryder (“A Morte Pede Carona”, filme de Robert Harmon, 1986)
Do jeito que o trânsito anda violento no Brasil, nem o psicopata que gosta de matar motoristas, interpretado pelo ator Rutger Hauer, se arriscaria em pegar uma carona. Ônibus, então, nem pensar. Afinal, ninguém merece ser encoxado, nem que seja um senador oligarca ou um facínora da pior estirpe.
Alex Forrest (“Atração Fatal”, filme de Adrian Lyne, 1987)
As mulheres, quando querem, também podem ser malvadinhas. Lembro-me como se fosse hoje de ter saído do cinema com as pernas bambas e os testículos recolhidos até à garganta. Apavorado, eu jurava nunca mais pular a cerca, ao passo que a minha namorada sorria (vingada, confiante) com aquele mesmo sorrisinho de Alex Forrest (Glenn Close). Minha gata garantiu que o filme era um drama “light”, uma sátira, quase uma comédia. Para mim, foi um suspense dos mais escabrosos. Num país em que se bate tanto em mulher — sobretudo nos rincões mais escondidos, lá aonde a lei não chega e o pavor é tão grande que chega a deixar suas vítimas resignadas — o medo é também cabível aos homens? Senhoras, a Lei Maria da Penha vale para a proteção dos marmanjos cujas mulheres têm pulso forte? Calma, gente. Só tô brincando.
Michael Corleone (“O Poderoso Chefão I, II e III”, filmes de Francis Ford Coppola, a partir de 1972)
Michael (Al Pacino) parecia o mais amistoso e ingênuo da prole de Don Vito Corleone, até que o poder lhe caiu no colo. Caiu nada. Foi conquistado. Na verdade, o mafioso caçula galgou terreno ao se mostrar o mais astuto, atirado e impiedoso dentre os irmãos. A capacidade do fascinante Michael Corleone para se imbricar no aparelho estatal, nas polícias, no judiciário e no meio político faz lembrar a desenvoltura dos picaretas de colarinho branco destas plagas, que fizeram (e ainda fazem) carreiras, mutretas e fortunas na corruptela da política brasileira.