Era o velório da minha tia, irmã mais velha da minha mãe. Mamãe chorava sua dor, cheguei ao seu lado e segurei sua mão. “Perdi minha segunda mãe”, ela disse. Perdi minha segunda avó materna, pensei. Depois que a vovó se foi, minha tia tomou o lugar da matriarca. Seu coração era um salão de festas, ela não media esforços para reunir a família.
Toda vez que eu a encontrava, já nos últimos anos de sua vida, ela me pedia para visitá-la mais vezes. Eu vou, tia. Passava o tempo, nem sempre eu ia. Vivia na correria da rotina. Ela mandava presente e rosa do jardim. Eu fazia a visita, a gente ria, se beijava e brindava com vinho ou café. Minha tia também era médica, e seus pacientes a adoravam. Ela me ensinou a importância de não perdermos a humanidade em nossos atendimentos. Tínhamos outra coisa em comum: amávamos pintar quadros a tinta óleo. Assim, em nossos encontros, falávamos sobre a medicina, a pintura e a vida.
A morte da minha tia atropelou a família. Por mais que morrer seja a única certeza que temos na vida, ainda sofremos a cada partida. Tenho minha fé e minha religião, tento entender que a morte não é o fim; mesmo assim, ela dói em mim. A morte me traz o passado, e com ele, meus arrependimentos (as visitas que não fiz e os “eu te amo” que não falei). A morte também me entrega o futuro, com toda sua ausência.
Preciso enfrentar o medo. O medo da espera e do fim; do ceticismo e da solidão. Para encarar esses dias ruins, tranco-me em minha alma. É como se nela tivesse uma casinha bem simples, de uma única janela. Fico sozinha, esquecida, observando a vida passar. Acordo, em meus dias nublados, para observar a existência lá fora: tudo permanece igual, tal como disse Fernando Pessoa: “à hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se, todos os lugares são o mesmo lugar”.
Entendo que, quando meu mundo está triste, tudo continua igual. No ruído da multidão, o viúvo continua a chorar baixinho; o carpinteiro, a pregar a madeira; o menino, a jogar a bola. Da janela da minha alma, compreendo que a vida não espera a dor de ninguém ir embora — bem que seria bom poder parar o tempo!
Sonho com uma espécie de paz incompreendida, uma lucidez alegre. Mas, por enquanto, essa ilusão é um desejo distante. Rubem Alves tinha razão: “a morte é uma saudade sem remédio”. Estremeço. O luto me revela: sou fraca, sou forte. Posso fugir, posso ficar. Quero atravessar grandes mares, quero os pés na areia. Quero pintar poesia. Quero os sentidos, os pensamentos, as palavras. Quero entender Pessoa: “que cada momento não passa nunca, que a flor colhida fica sempre na haste, que o beijo dado é eterno, que na essência e universo das coisas, tudo é alegria e sol; e só no erro e no olhar há dor e dúvida e sombra”.
Olho o passado para chegar ao futuro (assim, sobrevivo ao presente). Lembro de quando brindávamos nas festas e nos dias comuns, quando colhíamos as rosas do jardim da casa, quando cortávamos o bolo de fubá no lanche da tarde. Quando abríamos o ovo de Páscoa e quando esperávamos pelo Natal. Quando contávamos nossas histórias ao redor da mesa, aos domingo, na comunhão em família.
Agora, tenho menos medo da morte. Deixo-a entrar por minha janela, e, juntas, choramos a dor da saudade…