Os terrivelmente evangélicos serão abduzidos por último

Os terrivelmente evangélicos serão abduzidos por último

Sonhei que o mundo tinha secado e éramos resgatados por raios tratores. Operação intergaláctica em prol dos sobreviventes do planeta Terra. Mas, quem sou eu para fazer especulações premonitórias? Só mais um sujeito que escreve para agradar a mãe. Grande coisa. Fui confrontado por juízes terrivelmente evangélicos durante uma partida de futebol: “Afinal, foi dentro ou fora da área?”. Não vou ficar me gabando pelas minhas fraquezas. Fortaleza é melhor do que Natal. A pior guerra é aquela que acontece dentro da cabeça da gente. Vira um inferno. São pensamentos cabulosos tentando escapar da coleira o tempo inteiro. Espero jamais enlouquecer. Seria desagradável para os convivas dizer tudo o que eu penso a respeito do governo vigente, das bolsas de colostomia e do resto da humanidade. Acordei azedo. Isso é o que eu chamo de unanimidade. Uma xícara de leite fervente caiu no meu colo. Minha parceira me colocou para correr. “Se ainda resta um pouco de gana aí dentro desse peito, tome tento e ponha o lixo para fora.” Não se brinca com os bíceps de uma mulher irada. Não importa o que disser a Rede Globo, a cigana balofa e a legislação vigente: nunca pare de trabalhar. O ócio vai deixar você doente. Quando ficar velho, seja um sujeito que tenha mais a acrescentar ao contexto social do que o cheiro azedo de urina e as enfadonhas histórias particulares que ninguém está interessado em ouvir. Você ainda não morreu, mas, já tem um punhado de gente digladiando pelo rateio do seu patrimônio. Enxote essa turma do seu convívio. Doe, em vida, boa parte da sua grana para os Médicos Sem Fronteiras, os Escritores Sem Editoras e namoradas golpistas que sejam craques em pompoarismo. Vaginas que fumam charutos em apenas duas tragadas. Já vi isso num circo de horrores. Dá para contar nos dedos os que se dispõem a ouvir um homem idoso contando potocas. O tempo não para. Nem toda surdez será castigada. Parece que despiroquei. Parece que despirocamos. O mundo anda veloz, cem por cento conectado e doido. Deve ser culpa do Zuckerberg. Mais esperto do que um míssil teleguiado, o magnata da comunicação nos ensinou a matar a conversa de boteco em prol do exercício em vaidade. Prefiro o vício da linguagem. Ou praticar cunilíngua. Provavelmente, você ainda não compreendeu aonde é que essa joça de texto vai dar. Tempestade de ideias. Não os culpo por isso. Também já fui enganado por imortais da academia de letras. Deve ser uma espécie de surto. Com a palavra, Dráuzio Varela. Não será preciso ter a beleza de uma Patrícia Poeta para entender que estamos fodidos, enfeitiçados pelo efeito paralisante da internet e das redes sociais. Agora mesmo, um sujeito que nunca vi mais gordo depois de perder 40 quilos e vinte mil reais numa cirurgia bariátrica escreveu cobras e lagartos na minha timeline. Ora, isso é uma descompostura, é excesso de banha entre os neurônios. No meu universo paralelo mando eu. É como se o sujeito entrasse na minha casa, comesse minha esposa e, ainda por cima, mijasse na aguardente. Acho que já ouvi esses impropérios numa piada de mau gosto. É óbvio que excluí o safado com um simples click. Será que Deus faz assim na sua máquina de matar pessoas? Não preencho os requisitos legais obrigatórios para portar uma arma e entrar no paraíso. Também não posso manobrar o meu carro sobre as costelas desse energúmeno. Já não possuo um veículo. O último que eu tinha usei até se desintegrar, até o paraíba-da-mecânica me proibir de chamá-lo de paraíba e me colocar para fora do seu estabelecimento. As coisas mudam. Já não se fazem mais oficinas mecânicas como antigamente: chassis adulterados, paredes sujas de graxa e aqueles formidáveis calendários da Pirelli com fotos de mulheres nuas. Se for bater punheta, lave as mãos. Meu sonho de consumo é almoçar em casa e ir a pé para o trabalho. Sou fã das linhas do metrô. Ao contrário dos meus intestinos, elas funcionam perfeitamente. Tenho uma camisa retrô com a foto do Beatles conquistando o mundo. E eu que pensava que eles eram maiores do que Jesus Cristo. Os lírios que Lennon levou de Tracy Chapman na calçada da fama, ou melhor, os tiros que Lennon levou de Mark Chapman na calçada infame do Dakota foram inteiramente em vão. Imagine um mundo sem a Taurus. Deixei que pregassem os meus sonhos numa cruz. De vez em quando, ainda rezo para eles, atirando-lhes pedras para forçar uma ressuscitação. Estou completamente pilhado. Faltam poucas horas para entregar um texto minimamente decente para o meu editor e não faço ideia sobre o que escrever. Talvez, uma longa carta de despedida permeada de ressentimento e erros gramaticais primários. Quem sabe, eu recorra à poesia como último recurso. Até hoje me tomam como poeta. Horda dos ruminantes. Já rimei amor com dor. Já tomei leite com manga. Já fiz circuncisão e mandei um rabino ir tomar no olho do cu. Por que não usam anestesia? Ninguém é perfeito. Nem o prefeito, nem os buracos das ruas. Levei uma vida ordinária demais. Como sonhar com o ócio na velhice, regiamente remunerado pela previdência oficial, depois de levar uma vida inteira desperdiçada com obviedades. Lugares comuns qualquer um encontra. A estrela guia se fodeu. Antes ela do que eu.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.