Lá está. Viu? Atrás daquele monte de compromissos, ao lado das caixas de expectativas não atendidas, bem ali! Em frente à prateleira das desculpas, perto do armário dos medos e suas gavetas de culpas, isso, achou! Bem ali, bem ali tem uma mulher sorrindo.
Repara como ela sorri bonito. Lindo, né? É uma moça que escreve, também. Sim, ela escreve. Como? Escreve o quê? Ah, claro. Escreve cartas. Para quem? Para ela mesma, para os outros, para ninguém. Porque tudo o que a gente escreve na vida são cartas, né? Certo é que elas ganham outros nomes por aí, no meio do caminho. Mensagens, recados, missivas, canções, literatura, peças de teatro, receitas médicas. Mas são sempre cartas. E essa mulher que sorri também escreve cartas para o mundo. Nem sempre chegam a seus destinatários, nem sempre têm quem as receba. Mas a moça que sorri a beleza nunca deixa de escrevê-las.
Espera um pouco. Nossa Senhora! Parem tudo. Ela está sorrindo ali. Ao lado do grande arquivo de grosserias e deselegâncias. De cara com a sala das reuniões intolerantes. Apesar da tempestade de baixarias que assola a vida. A despeito da intolerância, da cegueira política, do descaso com o outro, da ignorância, da empáfia, dos chatíssimos donos da verdade. Apesar de tudo isso, a moça está sorrindo.
Brequem essa roda desenfreada que atropela tudo! Levantem as pontes! Baixem as cancelas! Tem uma mulher sorrindo! Contra tudo, contra todos, ela sorri!
Você há de se perguntar por quê. Por que mesmo essa pessoa está sorrindo? É compreensível. Hoje em dia quase nada é de graça e um sorriso também não vai fugir à regra. Correto. Mas depois de vê-la sorrir de perto, quando você se der conta de que ela está sorrindo de fato, nesse instante saber por que ela o faz não vai fazer mais a menor diferença. Qualquer motivo é menos interessante que o sorriso em si, sem causa nenhuma, sem motivo aparente. A moça simplesmente sorri.
E assim, de repente, um sentimento simples se espalha pela vida complicada de todo dia.
Ali mesmo tem uma mulher sorrindo. Abra os olhos de ferro e cimento e fumaça, universo! E guarde o sorriso dela em suas curvas, em suas idas e vindas, em seus abismos de mistérios. Ela vai fechar esse sorriso daqui a pouco. Alguém vai jogar areia nos olhos dela. Por maldade, por pura maldade, alguém vai barrar-lhe o riso.
Ela vai se recolher na labuta, dedicada, trabalhadora. E vai esperar a hora de sorrir de novo. Vai sonhar com a possibilidade de um milhão de pessoas perderem uma moeda em frente à casa de quem precisa de dinheiro. Vai rezar por quem está triste, pedir por quem não vê razão para seguir em frente. Ela vai adotar crianças, animais, causas impossíveis. E vai escrever cartas de amor a um mundo cheio de ódio.
Bem ali, entre um problema e outro, atrás do tiroteio e da agitação, intocada e verdadeira, tem uma mulher sorrindo. Repara. Repara como ela sorri bonito.