O fato de comermos carne não nos impede de amar os bichos

O fato de comermos carne não nos impede de amar os bichos

Foi na minha infância que visitei pela primeira vez uma granja. Enquanto viajávamos, meu pai explicava para meus irmãos e eu que poderíamos pegar os pintinhos com as mãos, que daríamos comida aos porcos e tomaríamos o leite fresco ordenhado da vaca. A pequena viagem de carro tornou enorme a expectativa de uma novidade para as crianças da cidade: a vida rural.

Lembro-me de praticamente todas as sensações daquele passeio; do barulho de cocoricós no galinheiro e seu corredor comprido que cheirava à ração; de odores diferentes no pasto por onde eu caminhava atenta para não pisar nos montes de estrume; da grama verde e os bois e os bezerros que descansavam sob a sombra de eucaliptos; dos porcos e do barulho engraçado que eles faziam; do lago onde eu pesquei, pela primeira vez, lambaris com vara de bambu.

Dei milho para as galinhas, brinquei com um porquinho e passei a mão na pelagem macia do cavalo. Reparei que cães dormiam preguiçosos ao lado de vacas gordas, e fiquei curiosa com a interação daquela fauna. Após uma manhã inteira de novidades e surpresas, veio o almoço: um leitão assado.

Os adultos ficaram animadíssimos. Que delícia! Intrigada, perguntei para o tio se o porquinho era da mesma família daquele com quem eu havia brincado algumas horas antes. “É sim, é o irmão dele”. Comecei a chorar.

Chorei muito e chorei alto. Minha mãe tentou me explicar que era normal os humanos comerem os bichos. “Sabe aquela carninha que você come no almoço? Ela vem do boi, igual àquele que você viu no pasto.” Mas o tio, no seu jeito bruto de caipira da roça, logo emendou: “Não chore, menina! A gente gosta dos bichos, mas eles são para comer”.

Não sou vegetariana e nem vegana. A verdade é que adoro comer carne. Sou fã de churrasco; minha boca saliva quando vejo uma picanha malpassada. Entretanto, nunca me esqueço daquele dia na granja. Sei que parece contraditório, mas é assim que é. Na Índia, a vaca é sagrada. Os chineses comem cachorros. Sinto náuseas só de pensar nos cães lá de casa sendo assados. E esses meus amigos de quatro patas amam a o filé mignon que dou para eles por baixo da mesa do almoço.

Outro dia, presenciei a discussão de dois colegas: um que come carne e outro que adotou a dieta vegetariana. Descobri que há quem acredite que não somos onívoros, como sempre fomos classificados — dizem que o sistema digestório do ser humano se parece com o dos herbívoros; assim, a nossa ingestão de carne seria apenas um fator cultural. Será? É tema para uma longa discussão, mas abandonei os dois quando eles começaram a se agredir verbalmente:

— Você é um assassino, comedor de cadáveres.

— Mas plantas e vegetais também possuem vida; então, também é assassinato.

Entendo que cada um é livre para escolher o que deseja comer. Discussões desse tipo, que vemos tanto nas redes sociais, não levam a nada. Talvez, porque alguns veganos e vegetarianos querem impor seu estilo de vida. Talvez, porque alguns onívoros não sabem respeitar a opção alimentar de quem não come nada de origem animal.

Sabemos que animais sofrem maus tratos. Sou a favor do fim das touradas e vaquejadas; e enquanto houver esse tipo de maldade, sempre torcerei para que touro e vaca se deem bem. Sou a favor de não ter mais zoológico e nem caça esportiva. Quando soube que uma pessoa matava gatos a chumbinho por puro prazer, quase enlouqueci.

Mas quando o assunto é a carne que como, quem sabe, quando eu for mais evoluída, deixe de comer boi, peixe e frango. O que sei, por enquanto, é aquilo que aprendi quando criança, de forma traumática, porém realista: não é porque comemos carne que não podemos cuidar dos animais; e não há nenhuma hipocrisia nisso.

Rebeca Bedone

é médica.