A primeira obra traduzida do húngaro Sándor Márai no Brasil foi o livro “As Brasas”, lançado em 1999 pela Companhia das Letras. Márai (1900-1989) é conhecido como o “escritor nascido com o século 20”, assim como outros grandes como Borges, Nabokov e Hemingway. Mas, ironicamente, grande parte da obra do escritor está umbilicalmente ligada aos ritos, gestos, costumes e instituições da Europa no século 19. O declínio da aristocracia e a emergência dos novos costumes burgueses costuram temas universais como lealdade, obstinação e alheamento.
A narrativa parece simples, mas premia leitores mais sensíveis às condições e sutilezas da condição humana. A história, ambientada no Império Austro-Húngaro narra a vida de Henrik, um velho general recluso em seu castelo por mais de quatro décadas que, em um dia, recebe uma carta de Konrad, amigo de infância que não o vê há 41 anos.
“No colégio os outros logo pararam de zombar daquela amizade, com a qual se habituaram como se fosse um fenômeno natural. Agora só se referiam a eles pelos dois nomes, como se faz com os casais. Mas não debochavam. Naquela relação, cheia de ternura, seriedade e dedicação havia alguma coisa de fatal, de tão luminoso a ponto de desencorajar qualquer sarcasmo. Relações desse tipo provocam sentimento de inveja em todas as comunidades humanas. Não há nada que os homens desejem tão ardentemente como a amizade desinteressada.”
Diversos porquês foram ruminados por Henrik pelas últimas quatro décadas, enquanto ele construía uma espécie de certeza solitária sobre o que, de fato, causou a ruptura. A visita de Konrad representa uma oportunidade de esclarecer os motivos pelos quais a amizade foi corrompida.
Nos momentos que antecedem o reencontro, Márai alimenta uma expectativa crescente de que algo grandioso está prestes a ser revelado. Como se um grande empreendimento fosse solucionar as ausências protagonizadas pelos dois homens.
Porém, ironicamente, o duelo entre Konrad e Henrik não é feito com armas e espadas. Ambos duelam com as palavras, num diálogo meticuloso que tenta, por vezes, desenterrar as ações do passado. O tom passional das acusações contrasta com o ambiente semi-gótico que é ilustrado pelos cômodos do castelo, pelas velas e pelos móveis. Toda composição, sugere um significado na história de ambos: as chamas que oscilam nas velas, o salão bem decorado, porém vazio e sem vida, as madeiras que queimam na fogueira. Márai criou um espaço atmosférico onde quase tudo incorpora um ar de advertência, de cautela. Todo o diálogo é fruto de fina observação, de esmero e de capacidade para vasculhar os espaços recônditos dentro dos personagens. A grande distinção de Márai é conseguir falar ao espírito sem recorrer à religião ou à filosofia.
O título da edição portuguesa, publicada pela editora Dom Quixote, “As Velas Ardem Até ao Fim”, mostra o compromisso de Márai em ter o passado como um lugar que pode ser revisitado, questionado, mas nunca solucionado. O passado age como um personagem, pois a sua relevância na obra é tanta que transcende a questão temporal. A tradução brasileira, “As Brasas”, manteve a premissa que conecta título e narrativa. Brasas remetem à uma queima contínua. Combustão elegante, inacabada, o que, indiretamente faz jus às tensões criadas pelo hiato de 41 anos de separação.
Uma personagem satélite que contribui para a densidade narrativa é Nini. Uma criada que, por vezes, de tão onipresente, assume características quase fantasmagóricas. A posição de Nini em toda obra é difusa, pois ela representa uma ama, uma mãe, uma criada e uma conselheira.
“Nini tinha noventa e um anos mas chegou rapidamente. Criara o
general neste quarto. Estava presente quando o general nasceu. Nini tinha
dezesseis anos na altura e era muito bonita. Era baixa, mas tão robusta e
calma, como se o seu corpo conhecesse algum segredo. Como se escondesse
algo nos ossos, no sangue, na carne, o segredo do tempo ou da vida, algo que
não pode ser dito aos outros, que não pode ser traduzido para outra língua,
porque as palavras não suportam esse segredo.”
Nini é a maior confidente de Henrik. Conhece suas nuances e sabe seus segredos a ponto de pressentir o que provocou a ruptura dessa amizade. Ao mesmo tempo, Nini está em lugar semelhante a Henrik: dois reféns da visita de Konrad.
A tensão para esclarecer o passado por meio do diálogo e dos símbolos se torna mais importante que o desfecho, pois o desfecho é impossível. A indefinição indica que, de um jeito ou de outro, por mais que tentemos asfixiar, negar ou desertar, há sempre alguma questão esperando o momento de ser respondida.