Ontem ocorreu um fuzuê dos grandes pelo fato de a craque Marta, maior goleadora da história das Copas, ter usado um forte batom roxo na partida contra a Itália. Sim, um batom: um cosmético comumente usado por mulheres para colorir os lábios. Mas por que essa estranheza? A surpresa pública pode ser explicada por inúmeros motivos, mas não há como fugir do viés de “masculinização” do esporte feminino.
Mais interessante do que notar que o padrão de condutas do lado masculino do esporte é adotado sem oposições, chama atenção a curiosa conveniência na escolha do que é imposto. Nem tudo o que ocorre com o futebol masculino é transferido ao feminino. As vantagens monetárias e privilégios de escolhas, certamente, não são. Senão, vejamos.
Terça-feira, 18 de junho de 2019. Brasil e Itália jogam pela Copa do Mundo de futebol feminino, em uma partida disputada e decidida na bola parada. A vida do brasileiro médio, o bonus pater familiae, segue o fluxo do seu cotidiano, sem maiores alterações ou alardes. Início do mês de junho de 2018, mais de um ano antes: o Ministério do Planejamento se pronuncia acerca da redução de jornada no serviço público por conta dos jogos do Brasil na Copa do Mundo de futebol masculino. Até aqui, tema batido e bem explorado pelas sensatas pessoas que acompanham a discrepância de tratamento entre as modalidades esportivas.
O salário das mulheres no futebol também está no cerne da discussão. Ainda ontem, uma importante reportagem mostrou que Marta, talvez a melhor jogadora da história do esporte, recebe menos de 400 mil euros anuais. O salário de Neymar, jogador longe de estar entre os maiores do Brasil — que dirá de todos os tempos — gira na casa dos milhões. Sem críticas ao futebol do camisa 10 da Seleção, apenas a título de comparação fática.
Esses dois apontamentos servem para endossar que a “masculinização” do esporte não está apenas no padrão de condutas, mas na imposição sem valorização, um indesejado ônus sem bônus. Alguém já parou para notar o quanto são desleais asmedidas das traves para o jogo das mulheres? E que, talvez por isso, haja tantos gols de “cobertura” nessas partidas? E os uniformes, seriam eles adequados e realmente confortáveis, feitos para elas? Por que, principalmente no Brasil, o comando do futebol feminino, incluindo aí os técnicos, émajoritariamente masculino? Quantas narradoras de futebol feminino você conhece?
A partir daí podemos ter uma breve noção do quão espantoso é uma mulher usar um batom — pasmem! — em uma partida de futebol. Não estamos acostumados a isso.
Ali, no campo, estão mulheres que correm não apenas em busca da bola e do gol, mas também de visibilidade, atenção e respaldo. Elas querem o calor da torcida e a sonora vibração coletiva em um tamanho que possa se traduzir em valorização do esporte que praticam. É um jogo também de sobrevivência.
Lembram-se dos Cavaleiros do Zodíaco? Todas as amazonas que lutavam pela deusa Atena eram obrigadas a usar máscaras. O motivo é muito simples: ao lutar, as mulheres deveriam abrir mão de sua feminilidade para guerrear em pé de igualdade com os homens, passando pelo mesmo treinamento árduo que eles e desprezando seus trejeitos, com o objetivo de se fortalecer, de igualar-se aos guerreiros. Afinal, o forte era o homem, o cavaleiro. O nome do desenho, apesar de tudo girar em torno de Saori Kido, a reencarnação da deusa Atena, é Saint Seya. Isso não é à toa.
E a realidade das mulheres na Grécia antiga não eratão destoante do desenho animado em questão. Suacriação era feita separada da dos homens, em um “gynaikeion”, tal qual os “hikikomori” japoneses —pessoas que lá se isolavam socialmente, mas por opção própria. Elas não podiam andar sozinhas e se cobriam dos pés à cabeça, sendo tuteladas por homens, como se incapazes fossem. O mundo grego era patriarcal e a Ágora era reservada para os varões. Os gregos eram altamente misóginos. Naquela época, o ser vivo do sexo feminino não podia nem ao menos assistir às competiçõesatléticas. Esqueça o conceito de “mulheres de Atenas” como sinônimo de liberdade: elas eram criadas para servir e educadas para sobreviver.
Ao jogar por sua nação, as mulheres da Seleção Brasileira, bem como as de todas as outras, parecem estar sob as mesmas expectativas que as de Atenas. E um simples detalhe, como um batom, já se mostra suficiente para o coletivo e espantoso vendaval de matérias sobre algo tão banal na vida de uma mulher, independentemente do marketing envolvido. Talvez o que chame mesmo a atenção seja o fato de não se consolidar em nossas mentes que ali estão mulheres, com suas peculiaridades, histórias e batalhas, prescindindo de uma total “masculinização” para praticar um esporte genuinamente delas. Quem sabe essa iniciativa possa demonstrar que não é algo tão utópico o futebol ser também um esporte de garotas. Assim, paulatinamente, as máscaras atenienses do esporte podem ir caindo, com ou sem enxame em volta.