A necessidade de existência de um herói salvador é constantemente incutida no imaginário popular. São impulsionadas, desde que nascemos, histórias das mais diversas em que o dia é salvo por uma figura pitoresca, normalmente dotada de grandes poderes, que atrai a admiração pela correção moral e pelo fato de fazer o bem sem contraprestações. Não há nada de mal em fantasiar mundos icônicos onde um ser meta-humano irradia ações probas. Nada mesmo.
O grande problema está quando a fantasia invade o plano real, fazendo nossas mentes acreditarem em justiceiros puramente imparciais, cujas ações estejam impregnadas pelo sentimento imaculado da proteção de todos. Esse ser humano modelo, repleto de boas condutas, não apenas inexiste como também, se existisse, deveria afastar-se, ele mesmo, da atração por tais atribuições, não contribuindo com a propagação da criação de seu próprio mito; assim, no final das contas, acabaria protegendo a si próprio.
Existem ações louváveis praticadas cotidianamente por um sem-número de cidadãos, não havendo como esquecer-se disso. No exercício de suas profissões, bombeiros, policiais, salva-vidas, enfim, aqueles cujo labor se confunde com a proteção da vida alheia, em muito se assemelham a heróis. Boas ações também são praticadas voluntariamente, diariamente, por centenas de milhares de pessoas que se compadecem do próximo que esteja em situação difícil. Isso pode ser feito isolada ou coletivamente, mas não deixa de ter a mesma raiz: o estado de paz interior que se assume transparente com o bem fazer — mesmo havendo os meticulosos que ostentam sua caridade como autopromoção.
A questão tem nuances também bíblicas. Jesus, referindo-se aos samaritanos, indicava na famosa parábola do novo testamento que a prática de boas ações estava ligada a uma questão de amor. Amar seria, pois, estender a mão sem preconceitos, a quem quer que fosse. Em uma análise mais detida, o bom samaritano seria uma espécie de herói da compaixão.
Nos dias atuais, mais especificamente na realidade brasileira, parece haver um fenômeno de busca por grandes heróis que salvem a nação dos maus elementos. Para consolidar o enredo hollywoodiano, a epopeia tupiniquim tem como antagonistas principalmente os atuantes na política nacional — como se fosse possível uma dissociação entre seus valores e os do restante da população, e como se o poder fosse o principal responsável pelos desvios de conduta. Nesse cenário, carente de bons exemplos, o brasileiro médio adotou para si uma burlesca narrativa em que figuras emergentes se blindam, pela aclamação, como verdadeiros heróis. A exposição duradoura, contudo, derruba essa mística, e a decepção pela humanidade alheia acaba expondo a necessidade de voltar à realidade.
Em “Injustice: God Among Us”, um cenário caótico é criado no universo das revistas em quadrinhos. Coringa, no intuito de comprovar suas experiências sociais sórdidas, atua na criação de uma ilusão para fazer o “Superman” matar a própria esposa, que se encontra grávida. Isso faz aflorar o que de pior existe no herói, que esquece o que de fato se entende por justiça para poder fazer a sua justiça. Começa a exterminar todo e qualquer inimigo, sumariamente, liderando um mundo cada vez mais sádico e cruel. Ainda que munido de um sentimento de melhoria do planeta, “Superman” adota uma postura arbitrária e ditatorial para fazer valer o que seria o mundo perfeito — aos seus olhos. O juiz do mundo é ele. Só há lei justa que seja a dele.
Um dos pilares do heroísmo real deve ser, primordialmente, a discrição no bem fazer. Heróis — os de verdade — são os que, pela sua condição e posição, fazem o seu melhor sem a necessidade de holofotes e sem o extremismo a seu lado. Um exemplo que vem à mente é a figura de Yang Kyoungjong, um coreano que lutou na segunda grande guerra em três exércitos distintos: o imperial japonês, o vermelho soviético e a Wehrmacht alemã. Nenhuma das bandeiras que carregou era de seu país de origem, ainda que, à época, a Coreia estivesse sob domínio japonês. Capturado pelos alemães e obrigado a trabalhos forçados na França ocupada ao lado de milhares de outros prisioneiros soviéticos — era isso ou a morte —, esse bravo combatente excedeu os limites do heroísmo, sendo posteriormente libertado pelos Aliados e tendo a sua bravura reconhecida no filme “My Way”, de 2011. Viveu como cidadão comum em terras norte-americanas até seu falecimento, no ano de 2012, em Illinois, como herói lendário de guerra, mas sem autopromoções ou alardes.
O que vemos no Brasil é um sinal claro de que as ações humanas são permeadas por algo bastante peculiar: a falibilidade. Não existe figura extraordinária capaz de reunir em si os atributos de elevação moral que a eximam de erros, notadamente quando se trata de figuras aspirantes ao poder que conseguiram influir diretamente, de alguma forma, no xadrez iniciado por suas ações anteriores. Sem espaço para o conspiracionismo; apenas ressalto a necessidade imperiosa de colocar a iconoclastia acima do heroísmo. É que, quando nos confrontamos com a feitura de um mundo melhor através de meios supostamente justificáveis pelos fins, acabamos mirando em Yang Kyoungjong, mas acertando no “Superman” de “Injustice”. E é aí que o herói passa a vilão sem ao menos se dar conta. Por isso, é salutar que não adotemos heróis perfeitos. Eles não existem.