Roland Barthes é o sonho ideal e perfeito do intelectual que eu gostaria de ser. Um crítico literário sim, mas antes de tudo, um homem que serviu à linguagem. Dedicou a sua vida ao estudo dela, amou a humanidade por meio dela. Barthes pesou, mediu, cheirou, sorveu, provou, atritou com a pele o mundo das palavras como poucos de seus pares — se é que ele tem pares —, conseguiram fazer.
Quando busco uma comparação para tamanha aventura pela linguagem, um triunvirato de escritores, e não de críticos, me vem à mente: Marcel Proust, Guimarães Rosa e James Joyce. Barthes jamais escondeu seu desejo de ser um escritor, e fez crítica literária literariamente, como jamais se viu. Um desejo desinibido de ser escritor enquanto escrevia a respeito de escritores. Crítica virou criação, e dele roubo a minha definição de crítico: um voyeur, um expectador nato, alguém que gosta de ver e entender os processos das coisas que são mais que bem feitas, mas que carecem de “nomeação” dada a estranheza que provoca no expectador, e dada a curiosidade a respeito do estado em que se encontra aquele que fez o belo acontecer: como se deu o prazer sofrido na busca do texto?
Não é, claro, por acaso que esses três escritores me vêm à memória se penso em Barthes. Para eles, a literatura não era uma representação: era a vida, a carne, o mundo, as cidades, os homens, o tempo. Eles me parecem gravemente equivalentes, porém em perspectivas distintas; por motivos, “sintomas” completamente diferentes. Nesse ângulo ilógico, com aroma de sonho, insônia e pesadelo, o “sintomático” rouba a cena, pois é nos sintomas que assistimos às doenças, suas manifestações e ações. A doença em si está dentro.
Os três escritores citados tem em comum ousadia, genialidade e peso, extensão física em seus ápices. Seriam eles portadores de uma doença rara, assombrosamente assassina, ao mesmo tempo linda, obscura e cegamente clarificante. Neste cenário, Barthes é o único médico capaz de analisar as patologias dos três enfermos quando do surgimento das mazelas deles no mundo.
Somente ele pode saber, nessa imagem de lúdico pesadelo, dos detalhes da calamidade instigante que acometeu os três: ele, Barthes, tem ainda o condão de prever que aquelas doenças com espectro de maldição, deixarão rastros em alguns excêntricos ao longo das épocas vindouras.
A peste resistiria a ele, caso quisesse curar os enfermos que de perto acompanha. Para sempre rastros se manifestariam aqui e ali, mesmo para quem nunca ouviu falar dos três doentes, suas pragas e muito menos tem notícia da existência do médico investigador.
O mundo não seria o mesmo depois da descoberta e apoteose da incurável e elitista, seletiva peste. Na densidade como aconteceu com os três, jamais veríamos. Mas os processos de evolução e mutação das doenças seriam irrefreáveis.
Sem medo de parecer pessimista, o dr. Barthes se dedica ao estudo e análise “apenas” para ver o limite da calamidade: como uma doença pode, a partir dali, ser “tratada” somente levando-se em conta todo o passado da “literatura médica”, todo o presente assombroso da praga, e os microvírus que permaneceriam para sempre no ar, manifestando-se em montanhas mágicas, homens sem qualidade, vidas secas, quartos de apartamentos classe média da distante América Latina, em sua mais caótica e estrambólica megalópole?
Particularmente apocalíptico parece o acontecimento, que no suspiro de morte do irlandês — talvez o mais doente deles — uma imensa dor se manifesta, tão imensa que não seria mais dor nem prazer: um argentino cego diria, anos depois, também em imagem lúdica, que eles (o argentino e o irlandês) seriam, no sonho do idoso bibliotecário que ama os livros, mas não pode mais os ler, o primeiro Adão que nomeou as coisas.
Essa dor tamanha, tão forte foi que não doeu; assim como um livro escrito para existir e atormentar; comover e assombrar, mesmo sem ser entendido. Um livro que sabemos, ninguém leu, mesmo diante do despudor de um mitômano ou intrépido leitor que afirme ter lido e agora ser incapaz de resumi-la. Ninguém entenderia o resumo, nem mesmo um dedicado estudioso: a linguagem contra ela mesma, seu limite de significação e sua aniquilação. Um livro onírico, escrito para não ser lido, mas talvez ouvido, olhado, contemplado. Face defunta, oriunda de Dublin, ficaria imutável, encantada, em sua vida de enfermo errante, fugindo como Moisés: nele, uma cidade, sua gente, sua língua, sempre estava. Dublin estava onde Joyce estava, por isso hoje, em Zurique, quase toda a Irlanda ocupa poucos metros de uma cova. Diante da dor, sua face endureceu, como folha seca de caatinga, cujo som, ao se quebrar, assemelhava-se a um tapa de sonoridade perpétua, perpétua agonia ruidosa, sempre em progresso.
Lento pesadelo. Roland Barthes observa três excêntricas mazelas como o mais apaixonado, astuto e cruel cientista: investiga tudo sem qualquer propósito de curar, ávido pelo entendimento da beleza do apodrecimento da carnadura que se amolece em pus ou se resseca em aridez. Doença fatídica. Inescapável. Acompanhada e descrita com prazer, em texto criterioso, analítico, mas estranhamente escrito ao ponto de parecer disputar com a astúcia dos vírus e bactérias, que se modificariam, no eterno, até o seu colapso.
Tamanho era o desejo de conhecer a doença e suas três modalidades, que ele, no fundo, talvez quisesse, depois de tanto contemplar os doentes e as doenças, ser doente como eles.
Não era um tratamento, e era este o segredo desse homem. No fundo, um voyeurismo sacrificador e autossacrificante: assistir alguém adoecer intensamente, por um vírus que não se dá a qualquer um, mesmo que em desespero, esse crítico tente adoecer para ser doença. O voyeurismo sempre pode caminhar para um “ménage à trois”.
Privilegiada e casual desgraça. Veneziana maldição. A desgraça de Kröguer. A transmutação em inseto. O espancamento covarde e coletivo de um negro na escuridão de um agosto, jogo de luz e fúria, mescla de erudição, paixão e necessidade: é crítico e poeta porque não consegue não ser.
O mal prosseguiria, dando forma e disforma aos três pacientes. Somando-se aos seus corpos, seriam intrínsecas ao ponto de desapropriarem os doentes de seus órgãos e identidades.
Seus nomes, antes substantivos, numa mutação de “Orlando” — a inglesa, pobrezinha, não suportou os sintomas; com pedras, para pesar mais, já que a moléstia veloz a vida, carne, sangue e peso lhe tomou, mergulhou na morte — deixariam um sexo por outro e o tempo mudava a partir dali, nela/nele, e ao seu redor, em compassos diferentes.
Os nomes dos três também sofrem dessa inexplicável mutação, pois da noite para o dia amanhecem e se percebem na classe dos adjetivos: alguém poderia ser, a partir daquela época, nomeado tuberculoso, ou proustiano; leproso, ou joyceano; até mesmo uma anomalia cabe na tela onírica desse insone pesadelo: hermafrodita ou roseano teriam valor semântico semelhantes, especialmente se num contexto informal, de conversa, dedo de prosa, falando a um interlocutor que jamais se manifesta. Falando com ele mesmo? Mas ao ponto de tecer comentários a respeito do semblante de seu inconsciente?
Terrível serena beleza verde. Verde de veredas e verdades. Barthes, então, perde o limite das conveniências e, como crítico, não como artista, faz brotar aqui e ali suas flores inclassificáveis — e sabemos que por flores e seus tipos muitas coisas podemos classificar, e com esses livros difíceis de nomear, um crítico pode se dedicar ao discurso amoroso, ou em uma espécie de sessão psicanalítica coletiva, falar do seu voyeurismo, do seu prazer do texto e até deixar escapar pistas do autossacrifício, que chegou também para ele, matando-se diante de centenas de estudantes, alunos seus: a partida definitiva do pai para a terceira margem, íntima, fincada.
Barthes, “não sabendo por qual nome chamar” os seus três enfermos exemplares, aos quais teria dedicado os melhores anos de sua vida, sem jamais imaginar que teria feito a escolha errada, a que não era do seu tipo. Anos a fio se equilibrando no tênue fio do medo de uma acidental cura; comovido diante da escuridão defunta a se aproximar dos três, carregada pelas pragas que se faziam desses e nesses três, esses livros incuráveis… sem forças para classificar a anomalia, a dor, o horror, aroma ou mau cheiro das feridas, semelhantes às flores de velório ou às flores de renda velha, flor em livro dormida. Só lhe restaria, esgotado, despido de qualquer vaidade pois o máximo de glórias já lhe tinha vindo, com tudo completo, Barthes nunca nos responde questões em seus textos, mas nos abastece de questões melhores. Já perto do fim da travessia, resta chamar os livros essenciais — necessários, urgentes como o ar que se respira, que se pregam em nós como enfermidade incurável — de “meu amor”. E toda a linguagem é fragmento de discurso amoroso.
Por causa da doença, não mais falaria o Professor Doutor: as aulas seriam interrompidas em prol de sinônimos e sintomas. Deixaria a casa em que morava, o emprego, a família, os amigos. No meio do Rio Sena viveria, num barco requintado e farto em livros, já que apenas de sua biblioteca não se desfizera. O rio, agora, era a casa dele. O rio, agora, era a casa da palavra. Na escuridão dos segredos, ele desapareceria, apenas para ver os seus doentes e males. Continuar sua busca, prosseguir em sua “recherche”, mesmo que rápido e acobertado, na madrugada fria, como fizera o seu amado Proust. Como fizera o apaixonado Michael Furey no conto do irlandês. Tudo é linguagem. Só nós, humanos, quando temos humanidade, sentimos e refletimos com memória e elaboração verbal a vida realmente vivida.
Sinônimo e sintoma: assusta a qualquer um que pare um segundo do tempo para olhar, perceber como são irmãs essas palavras — se no tropeção em uma calçada; se numa comida corriqueira, ordinária, mas favorita, contemplarmos sinônimo e sintoma, veremos que as duas são tipos de cofres, de senhas, de sinais e sinas, de pistas. Busca que cairá num tempo perdido: metástase só cessa quando morre quem tem o câncer.
Sinônimo/sintoma/sintaxe/sentido — a potência para dar o nome justo a tudo, esperando das maleáveis palavras as confortáveis certezas matemáticas, como Aristóteles tentara, em seu “Categorias”; antigo e clássico para nós, mas o Joyce de sua época. Ou o Barthes da Antiguidade seria Aristóteles? Melhores perguntas, nunca boas respostas. Dois signos que, por som e parentesco, distante ou próximo, convocam outras mais: infecção significativa, expressão, explosão silenciosa.
Surgiram esses livros nas vidas desses três doentes e desse médico sadista, em momentos de transtornante sanha, comum à espécie humana, mas neles potencializada pelo premiado vírus da genialidade: precisamos, queremos nomear, e se não conseguimos, sufocados ficamos. Todo homem tem de classificar! Que voluptuoso seria ao analista criterioso, detalhista, apaixonado e poético, deparar-se com a anomalia roseana. Ele, como gente, ser vivente que deseja e que demanda, seria sujeito, despido das alegorias dos ternos e gravatas. Talvez Barthes veria nessa anomalia que fala, esconde, esconde-se, o seu reflexo: um escritor que se enruste no crítico; ou o contrário?
Quão obcecado aparece nesses flashs de pesadelo, o Professor francês, apaixonado pela forma como a doença se manifestou em seu compatriota, abrindo-lhe sete chagas que, cada vez que as estudava, percebia coisas nunca antes nelas percebidas: ele só não nos diria se não percebeu antes pela impossibilidade de tudo se perceber, diante do tamanho da Catedral (curioso sintoma uma doença ter, por sua complexidade, detalhes, entrelaces e inacabamento, o apelido de catedral e, concomitante, uma de suas salas separada, com pompa e circunstância, para os habitantes de Sodoma e Gomorra. Desejo ou perversão? Desejo e perversão?).
Barthes sequer levantaria a suspeita, em público, de que a travessia das sete chagas lhe aumentou a faculdade perceptiva: por ter refeito os caminhos ele vê mais e melhor agora: vê por que reviu outrora, verá depois por estar revendo agora, infinitamente circular. Termina quando se inicia; inicia-se quando se termina.
Esconde-se, refulgia-se, mascara-se esse cientista preciso e ao mesmo tempo apaixonado e poético? Uma coisa e outra ao mesmo tempo, pois a chaga roseana, manifesta em anomalia, é um destino que, para determinados lugares, épocas, religiões, é mais anormal do que nascer com dois órgãos genitais.
Ao fim e ao cabo, tudo seria uma questão de como chamamos as coisas a partir dali: a linguagem, claro, era a raiz de todas as doenças, mas se recusaria, ela, a linguagem, como uma mulher que se recusa a ser mulher, a ser a cura de seus sintomas.
Nada da lógica do senso comum das vacinas e soros de peçonha. Os três desgraçados não seriam mais doentes, e sim exemplares “perfeitos” da enfermidade.
Proust, Joyce e Rosa não são romancistas. São três mazelas abençoadas, perpétuo presente divino do qual ninguém escapa, porque essa coisa de linguagem, essas coisas que tratam de linguagem estão em tudo e todos. Não se discute mais aqui o que as coisas são, mas que nomes elas têm, pois os nomes não as revelam, os nomes é que permitem a elas ser. Quem não tem nome, não existe. “No princípio era o verbo”.
Como se apresentam, manifestam-se, modificam-se e alteram os que pairam por um mundo que, bruto e imbecil, precisa se render à linguagem até mesmo para explicitar a sua boçalidade: líderes carentes de intimidade com a fala, muito menos com a leitura, quiçá com esse gesto despudorado, incontrolável, vicioso e viciado, de escrever.
Não sei como Barthes veria o mundo e os homens hoje, porque nossos sintomas são apenas excentricidades, maluquices e sandices. Pedindo perdão, mas em agonia para nomear, só me escapa pelos dedos palavras como burrice, rasura, falas compactadas para moldar pessoas que tem a obrigação de sorrir, de ser lago toda a vida, enquanto viver é mar em tempestade, e isso é muito perigoso.
A falta de linguagem dos que legitimam quem não a possui, portanto não se entende e nem entende o outro, quiçá um povo, uma nação e seu papel no planeta. A falta de capacidade de olhar, perceber, analisar e nomear o que se vê leva hoje milhões a legitimarem homens que falam, altivos, em público, em espaços institucionais e simbólicos, históricos, aquilo que só se confessaria, em sanidade, para um amigo, ou idealmente, para um profissional da área da saúde mental: fixação fálica por armas; preocupação substantiva com o uso que as pessoas fazem de seus órgãos genitais; líderes que temem professores, estudantes, escolas, universidades, museus e toda a classe artística, pensante. Adjetivos recalcados, vergonhosos, atacariam um universo que jamais conheceram, sobre o qual jamais leram e com o qual nunca contribuíram.
Esses líderes que simbolizam nações são sintoma e sinônimo: há carência de palavra, e essa carência culminou com a apoteose coletiva do fracasso, do vexame, do sem sentido: presidentes de Repúblicas, o mais alto cargo que um político pode exercer, não é íntimo, de forma alguma, de qualquer tipo de linguagem, seja a acadêmica de um ex-professor universitário, ou a que capta o éthos de uma nação e fala, por metáforas que seduzem os cultos, por simular generosidade na clareza para todos; convence os mais simples, constrói simpatia e empatia.
É necessário que se veja: não é de ideologia que trato aqui, pois o pesadelo atual é a apoteose da tragédia. A falta de linguagem começou com a mulher que estreia no pico da montanha do poder. Um povo simples nunca confiaria na primeira mulher que, gostem dela ou não, seria agramatical, incompreensível, e sem performance ou carisma, falaria suas alucinações com voz insegura, nunca treinada para a liderança, mas para os bastidores.
Isso se repetiria com o seu usurpador, que jamais foi um líder popular; e agora temos o colapso total e começa a nos agoniar a falta de palavra para descrever quem somos, se ainda somos, já que sem linguagem, caímos na indigência existencial; um homem se torna presidente não porque falou demais e muito bem durante a campanha, mas por ter se recusado a falar. Mas é maior o cataclisma, porque para quem não tem palavra, não sabe a falta que ela faz e o poder que tem. Por isso, gestos feitos com as mãos, xingamentos, agressões, modalidades boçais de comunicação, mais do que se fizeram presentes, foram eficientes. A falta da linguagem coloca hoje sob ameaça o que a linguagem nos garantiu: direitos, deveres, limites, geração de direitos tão logo ocorram mudanças planejadas ou de contingências.
Se olharmos para o discurso — se é que se pode falar assim daquelas manifestações verbais cabíveis aos primatas — dos que lideram nações, e lermos um conto de qualquer um dos três sagrados doentes dos quais Barthes cuidou em meu misto de sonho e pesadelo — veremos a distância jurássica entre eles. Trata-se de civilização ou barbárie. É como se Marcel Proust, James Joyce e Guimarães Rosa perdessem seus nomes nesse sonho homérico, dantesco, bardólatra. Os três são, agora, o que não se tem mais: linguagem.
Para encerrar este painel onírico, voltemos aos quatro personagens de que tratamos até aqui. Na crueldade de assistir ao espetáculo das moléstias da qual todos fugiam, suspeitava-se que Barthes descobrira não a cura, mas todo o sistema de funcionamento do caso e seus atores.
Não poderia — não queria? — criar um antídoto, mas um controle, preservando a vida do três que se deram para o mundo nos livros que criaram, nas dores e prazeres espontâneos a que se submeteram, não para melhorarem o mundo — um escritor de verdade não escreve para isso. O escritor escreve por ele, para ele, e como consequência, aumenta o mundo.
Porém Barthes escolheu o sacrifício final dos enfermos geniais e geniosos, para depois compartilhar algum saber a respeito dos procedimentos das bactérias, vírus e microvírus que atingiram os autores. Se achou uma cura, jamais a revelaria, e sim a esconderia. Nesse gesto egoísta ou inclassificável, a sua maior moléstia mental apareceria: era Barthes, como todo crítico, vítima de um sadismo incontrolável. Seria capaz de matar um rato lentamente, cortando-lhe as patas, aproximando-o e o afastando de uma chama de vela. Contemplação da agonia, não a vingança no gesto repetitivo de simplesmente matar. A imaginação da angústia de influências, riscos e rabiscos, reescritas e remendos. A palavra buscando conciliação com o mundo por meio da luta, não para o melhorar, repito, mas para estancar a fobia de não nomear, e consequentemente o mundo aumentar.
Nesse pesadelo insone, um “gran finale”. O médico cruel, incapaz de amar o indivíduo por amar a humanidade, entregou-se à linguagem por cedo perceber que ela nos diferencia de tudo o que existe no mundo: um homem só “é” porque se sabe no tempo e espaço, e sem a linguagem, nasceria, cresceria, reproduziria e morreria.
Não temos compêndios a respeito da história dos cães, gatos, pássaros: nada muda para eles. É possível pensar a relação do homem com eles, na medida em que o homem, nomeando-os, domesticou-os, fez e faz uso deles. Por isso a literatura é a própria vida, é a vida realmente vivida, pois é a mais potente, não em comover — esse poder é da música —, mas sem dúvida é a que mais informa, pois, forma.
Não é a mais bela, nem a mais emotiva, nem a que demanda mais materiais e infraestrutura, nada disso; porém é incontornável o fato de que é ela, a Literatura, a mais sábia das artes, pois o tempo humano só se torna humano quando pode ser narrado.
O dr. Barthes faria, nesse sonho/pesadelo/orgasmo do inconsciente, um único fármaco. Um remédio cuja bula desorientaria o leitor. Não por ser obscura, mas por ser clara em demasia. Belamente cruel, seu remédio mais famoso teria, no início e no final da sua bula, não uma orientação, mas uma questão: “Por onde começar?”