War Requiem: a obra-prima de Derek Jarman

War Requiem: a obra-prima de Derek Jarman

Há 30 anos, em janeiro de 1989, “War Requiem” foi lançado. De alto impacto visual e trilha sonora surpreendente, o filme confirmou Derek Jarman como um artista polêmico e inovador

Ao ser lançado, no final dos anos 1980, de imediato passou a integrar a lista dos clássicos antibélicos forjados pelo cinema, ao lado de “Apocalypse Now”, “Hiroshima Mon Amour”, “Agonia e Glória”, “Cinzas e Diamantes”, “Lacombe Lucien”, “Um Dia Muito Especial”, “A Guerra Acabou”, “Cruz de Ferro”, “O Franco Atirador”, “Matadouro Cinco”, “Glória Feita de Sangue” e “Dr. Strangelove”, entre não muitos outros. Com uma diferença notável e perturbadora: a ausência de sons de tiros, explosões e até mesmo de diálogos. “War Requiem” é conduzido pela obra sinfônica de Benjamin Britten (1913-1976), um oratório feito para a cerimônia de reinauguração, em 1962, da catedral de Coventry, que teve sua estrutura medieval destruída durante os ataques alemães a Londres (outubro de 1940 a maio de 1941).

A estrutura da música e do filme têm por base a vida e os poemas de Wilfred Owen, morto aos 27 anos na frente francesa, dias antes da assinatura do armistício que encerraria a Primeira Guerra Mundial. A música é onipresente e serve de moldura para o britânico Derek Jarman, cineasta, pintor, escritor e militante homossexual, provocar o espectador e alertá-lo para algo que deveria ser óbvio: a guerra, qualquer guerra, é um ato que, além de seus objetivos políticos e militares, revela a face mais cruel da violência humana, aquela cometida em massa contra as pessoas que não podem se defender, as populações civis, crianças e jovens, doentes, dependentes, desprotegidos, idosos.

A trilha sonora traz o próprio Benjamin Britten regendo o Coral e a Orquestra Sinfônica de Londres, e um trio respeitado: a soprano Galina Vishnevskaya, o tenor Peter Pears e o barítono Dietrich Fischer-Dieskau. Enquanto a intensidade da música invade e toma conta do filme, o espectador é apresentado a imagens vindas diretamente do inferno. Resultado da pesquisa que o diretor e sua equipe fizeram no Imperial War Museum, elas mesclam cenas de documentários das guerras reais com aquelas feitas em estúdio, e se sucedem em cores pálidas ou brilhantes, em preto e branco ou sépia, nítidas ou desfocadas, em Super8, 16mm e 35 mm, não importa o formato da bitola. Não interessa também qual a guerra, em que época se deu, que armas foram usadas. Jarman reuniu e editou o material, e construiu um mosaico simples e eficiente sobre a estupidez humana, um puzzle alucinante como há muito não se ousava colocar nas telas dos cinemas.

Laurence Olivier: em seu último papel no cinema

De 1989, quando o filme foi realizado, até os dias de hoje, o que foi feito de novo sobre o assunto? Talvez “Pecados de Guerra” (1991), de Brian de Palma. Talvez “A Lista de Schindler” (1993) e “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), de Spielberg. Talvez o sérvio-bósnio “Terra de Ninguém”, de Danis Tanovic (2002). Desse mesmo ano há “O Pianista”, de Polanski. Merecem entrar na lista? E “Dunkirk”, de Nolan (2017)? Quanto a estes, talvez seja cedo para avaliar se merecem ou não. Sem esquecer que todas as listas contêm injustiças, ou não seriam listas.

Em “War Requiem”, Nathaniel Parker representa Wilfred Owen. O espectador segue a sua trajetória por todos os estágios e cenários da guerra, da convocação à morte. Não contente com isso, o filme volta ao passado do personagem para mostrar a presença da guerra no cotidiano da sociedade britânica, nas escolas, casas, hospitais, praças, em toda parte. O olhar curioso do menino cederá lugar, ao longo do filme, ao olhar de morto-vivo com que escreveu seus últimos poemas em meio ao pesadelo das trincheiras.

Sir Laurence Olivier tem no filme o seu último papel no cinema, uma breve cena inicial em que surge numa cadeira de rodas como um soldado veterano e paralítico. Ele exibe as suas medalhas para a enfermeira enquanto se ouve um poema de Owen a descrever a destruição à sua volta, as perdas de tantas vidas mal saídas da juventude e a antevisão de seu próprio fim. O poema, “Outro para a juventude condenada”, pergunta: “Estes que morrem como gado / recebem como toques fúnebres / apenas o terrível ressoar / das armas de fogo?” Olivier morreria meses depois do final das filmagens, e a sua despedida tem lá os seus significados. O velho leão ferido sai de cena com as suas medalhas no peito. Esse mundo não é mais o dele…  Mas a sua despedida é espantosa: enquanto ouvimos o poema, ele não larga um sorriso e um olhar que destacam o orgulho infanto-juvenil com que exibe suas medalhas. Quem resumiria melhor a insanidade e a loucura decorrentes de ter estado em um campo de batalha e de ter saído de lá sem as pernas?

Jarman nos deu as boas-vindas. A partir de agora, é recomendável apertar o cinto de segurança. Bombas vão explodir sobre cidades, ruas e estradas, portos, campos e praias. Intermináveis cenas se sucederão nas trincheiras, nos hospitais das frentes de batalha, nas enfermarias improvisadas em escolas, mercados e igrejas. Algumas destas cenas são conhecidas, mas a maioria delas estava perdida nos escaninhos da burocracia militar britânica.

Brancos, árabes, judeus e asiáticos de todos os matizes, negros, mestiços e latinos, não escapa ninguém nas cenas mostradas sucessivamente, como se fossem um pesadelo bem editado. A humanidade está devidamente representada nos campos de batalhas, hospitais e cemitérios. Atenção: não é filme para adolescentes vidrados em harrypotters, crepúsculos e biografias de roqueiros.
Derek Jarman e Tilda Swinton

Atores frequentes em outros filmes de Jarman aparecem como soldados simbólicos da luta fratricida: Nigel Terry, o rei Arthur do brilhante e subestimado “Excalibur”, de John Boorman, é Abraham, o “Soldado britânico”; Sean Bean é o “Soldado alemão” e Owen Teale o “Soldado desconhecido”. Mas é Tilda Swinton, que estreara em “Caravaggio” (1986), também de Jarman, que arrebata o filme e nos marca para sempre como a onipresente “Enfermeira”. Graças a ela e ao filme, quem pensar na guerra como um estereótipo, como algo que diz respeito apenas ao gênero masculino, levará um choque. As mulheres estão nas imagens o tempo todo, se despedindo de filhos e maridos, se preparando nos hospitais antes dos primeiros tiros, trabalhando para atender a demanda de braços e pernas fraturadas, e órgãos expostos, e também como psicólogas ou religiosas para confortar tantas mentes destruídas pelas dores ou pela proximidade da morte.

Brancos, árabes, judeus e asiáticos de todos os matizes, negros, mestiços e latinos, não escapa ninguém nas cenas mostradas sucessivamente, como se fossem um pesadelo bem editado. A humanidade está devidamente representada nos campos de batalhas, hospitais e cemitérios. Atenção: não é filme para adolescentes vidrados em harrypotters, crepúsculos e biografias de roqueiros. Numa das cenas iniciais, por exemplo, Tilda Swinton grita diante do corpo do “Soldado desconhecido” estendido num altar de concreto. Com sua roupa de combate, ele tem as feridas expostas, mas parece descansar em paz, enquanto ela representa a imagem mais-que-perfeita da impotência, do desespero de quem nada pôde fazer para impedir tanto aquela quanto as outras mortes ao redor. Ela não emite som algum durante os minutos em que grita o seu silêncio, mas transmite com os olhos, a expressão facial e as mãos a indignação possível contra os que fabricam armas, os que provocam as guerras, contra os políticos e generais que mandam os jovens para os campos de batalha para matarem ou serem mortos por outros jovens. Às vezes, para tomarem as terras uns dos outros. Às vezes, apenas porque não falam a mesma língua.

Derek Jarman tem legiões de admiradores e de desafetos. Contabiliza altos e baixos surpreendentes numa carreira marcada pela polêmica e pela experimentação desde “Jubilee” (1971), uma abordagem cínica e corrosiva sobre a violência dos punks numa Londres pós-apocalipse nuclear. Seu “Caravaggio” de 1986 é um exercício de contenção cinematográfica, um filme singular sobre a genialidade artística, os conflitos homossexuais e as desventuras do pintor barroco do século 17. Após “War Requiem”, um filme marcado pela construção sutil e meticulosa, quase matemática, apesar do aparente caos visto na tela, Jarman ainda realizou, entre outros, “Crepúsculo do Caos” (1987), “O Jardim” (1990), “Edward II” (1991) e “Wittgenstein” (1993). Seu último filme, “Blue” (1993), mostra a evolução de uma tela azul durante exatos 90 minutos. Foi casado com Tilda Swinton durante sete anos. Produziu e dirigiu filmes até morrer aos 52 anos, no final de 1994, de complicações decorrentes da Aids.

Derek Jarman foi um cineasta ímpar, original, íntegro. Deveria ser mais exibido e debatido, para que não seja esquecido.

Fred Navarro

Escritor e jornalista.