Soube que o casal O’Rilley está custando para a família escandalosos 30 mil por mês. Sorte deles terem a bala, senão os velhos já estariam mortos. Têm cinco cuidadoras que se revezam nos lides, além da doméstica que limpa, lava e cozinha para a tropa. Marga tem 95; Seymour, 87. Faz cinco anos que Marga sofreu um colapso neurológico e foi parar na cama, surpreendida por uma fuga de coágulos que entupiu as principais artérias da cachola, secando de vez a fonte da sua pobre massa cinzenta.
A partir do último verão, cansado de ver a esposa definhando no leito, Seymour entregou os pontos, pirou de vez, enferrujou as catracas mentais, destravando a temível gaveta das piores loucuras, através das quais escapuliram, como cães ensandecidos, um rol de pensamentos devassos acorrentados por toda uma existência. Desfaçatez. Atos que eram pensados, mas, não executados. Então, desatrelado aos escrúpulos que tornam a convivência social possível, Seymour foi pego importunando a Marga com sevícias, urinando na sala de estar, molestando as crianças do condomínio, chupando picas de desconhecidos no meio da rua, em particular, dos andarilhos que ocupavam o vão da ponte sobre o Rio Calado.
Entupiram o velho coronel da reserva com generosas sopas de barbitúricos que finalmente frearam a sua verve demencial, acalmando os desagradáveis ímpetos, condenando-o a um comportamento mais plausível, muito embora, vegetativo, abobalhado, postado dezoito horas por dia numa cadeira-de-ripas frente à TV. O clã dos O’Rilley é bastante abonado e cuida dos seus cães ainda melhor do que cuida dos seres humanos. São ricos, limpos e discretos. Dos três filhos do casal, é Dolores, a caçula, a filha-mulher, quem supervisiona e administra os cuidados intensivos aos genitores. Ela possui a senha do banco.
Emma mora com a filha adolescente do outro lado da ponte, num bairro ilegítimo que surgiu a partir da invasão de uma área pública. Foi ali que os sem-teto fincaram os seus casebres ao longo dos anos. Era casada com Eddie, o açougueiro. Não demorou muito tempo, tiveram uma filhinha. Batizaram-na com o nome de Mandy. Aos cinco anos, durante uma troca de tiros entre a polícia e a milícia, Mandy foi atingida na nuca quando voltava da escola. Não foi simples explicar aos coleguinhas de classe que ela tinha sobrevivido ao disparo de uma doze, mas, não voltaria tão cedo ao convívio na sala de aula.
A partir daquela bala perdida, disparada numa cidade perdida, Mandy tornou-se um ser humano absolutamente dependente da boa vontade de terceiros. Era uma fruta que tinha caído do pé antes da hora. A saída de Emma do emprego de confeiteira foi imediata. Alguém com doçura suficiente precisava assumir os cuidados com a menina. Menos tempo do que se esperava, Eddie saiu para descarnar uma vaca e nunca mais voltou. Emma pensou que o homem da sua vida tivesse sido morto pelo polícia, mas, na verdade, tinha fugido com uma colega do curtume. Mudou de cidade, deixando para trás a companheira desempregada e uma filha sem chance alguma de sobreviver sozinha.
Essas histórias são reais. O que elas têm em comum? Talvez, quem sabe, a desgraça de uma doença deplorável que atinge um ente querido, a despeito da casta. Mais a abnegação de uns poucos. A diferença crucial é o poder do dinheiro. A riqueza pode acontecer com qualquer um. Ninguém deve se sentir culpado por ter nascido em berço de ouro. Porém, o exercício fictício de se colocar na pele de uma pessoa desprovida pode ter lá as suas consequências positivas.
Famílias abastadas lidam razoavelmente bem com esse tipo de drama, alicerçadas em condições financeiras confortáveis. Mas, o que dizer das famílias carentes negligenciadas pelas autoridades constituídas, que precisam lidar com parentes gravemente adoentados. A doença custa caro. Observem se a assertiva é ou não é verdadeira: quase sempre sobra para uma mulher tomar conta de um ente querido adoentado, seja ela uma mãe, uma irmã ou uma filha.
Quantos homens abrem mão do próprio emprego para se dedicarem integralmente aos cuidados com um parente especial. Gente pobre não pode pagar cuidadoras. E a maioria dos cuidadores, ou fugiu, ou está empregada, provendo as despesas da casa e cuidando da própria carreira. Embora louvável, é bastante incomum deparar-se com um sujeito que abdica da própria vida para cuidar de um parente combalido.
Não tenho autoridade nem interesse em julgar quem quer que seja. Esse texto é puro exercício de reflexão. Alguém, por favor, me explica. Parece líquido e certo que as mulheres estão mais solícitas ao sacrifício pessoal em prol de um ente querido. Conheço algumas que zelam, há anos, de filhos moribundos. O que acontece quando elas desaparecem? Quem acolhe o doente que resta? Um homem? O Estado? Provavelmente, outra mulher, seja ela remunerada ou não. Se bem que isso não faz tanta diferença. Afinal, não tem dinheiro no mundo que pague tanto amor.