Será preciso admitir um pecado. Dois, na verdade. O primeiro foi ter induzido o meu filho a torcer por um time de futebol. O segundo foi tê-lo ensinado a xingar. A primeira vez que fomos juntos ao estádio ele sequer contava três anos. Lembro-me que chorou de pânico quando pipocaram os fogos na entrada do Tessalonicenses em campo. Gastei dois picolés e um saco de pipocas para acalmá-lo. A sorte foi ele ter adormecido no meu colo antes de meia hora de jogo. Sorte maior foi o confronto terminar zero-a-zero. O empate foi um bom resultado para mim. Nada de rede balançando. Nada de foguetes espocando. Nada de choros incoercíveis.
A partir daí, retornamos inúmeras vezes ao estádio. Com direito a vestirmos o manto sagrado e pintarmos a cara de verde. E dá-lhe picolé. E dá-lhe pipoca. Até que o menino cresceu e assimilou a paixão. Água mole em pedra dura, vocês sabem. Aprendeu também a espinafrar sem a menor classe. Não estou me gabando por isso. Hoje, percebo que fui um mané. Dava pra torcer sem truculência verbal. Eu achei que fazia parte do pacote instruir o pimpolho a desopilar nas arquibancadas. Passados vinte anos, percebo que a paixão dele pelo meu time, digo, pelo nosso time, mantém-se intacta. O repertório de palavrões também, nas horas certas. No mais, apesar do meu deslize como educador, ele acabou se tornando um adulto gentil que adora futebol e nunca se meteu numa confusão por causa disso.
Tirei a mamãe do hospital. Pneumonia aos 80. Perguntei o que ela gostaria de ganhar de presente no Dia das Mães: ingressos para o Fábio Júnior, antibióticos ou uma nove milímetros? Mamãe reprovou o chiste. “Essa culpa eu não carrego”, ela disse. Era fã do Agnaldo Rayol e não tinha votado em Mojo Filter. Por meio de um decreto, o Presidente acenava com a possibilidade de promover o acesso mais liberal de crianças e adolescentes às escolas de tiro. Para tanto, ao invés da autorização de um juiz, bastava a anuência dos pais para que a garotada puxasse o gatilho, mirando sempre nas zonas mortais dos alvos fixos. Ela tossiu, fez careta, cuspiu na grama e soltou um insulto cabeludo contra o mandatário maior da nação. Devo ter aprendido os maus hábitos com ela. Ninguém é perfeito. Nem as mães.
Ela odiava as filas de domingo. Então, preferiu jantar comigo no sábado. O lugar eu escolhia. Optei por uma churrascaria com boa acessibilidade para uma velhota em precárias condições para deambular. Havia um atrativo extra. Naquela noite, alguém faria ali um show em tributo a Chico Buarque, que era um artista que eu admirava desde que eu tinha cabelos. Isso foi o meu pai quem ensinou: apreciar a boa música. A comida estava ótima; o show, idem; a chuleta, nem lhes conto. Enquanto rolava o som ao vivo, percebi a entrada de um jovem casal de namorados. Chegaram montados num carrão imponente, cujo nome eu não consigo pronunciar, muito menos, escrever aqui, por causa da escandalosa junção de consoantes. Os garçons são seres abnegados que sabem de um tudo nessa vida. Era o Lopes quem me atendia e ele comentou que um carro como aquele valia mais de 300. Achei o valor exorbitante, porém, não ousei duvidar da assertiva de um garçom experimentado.
Estacionaram numa vaga privilegiada, bem na porta do restaurante, destinada exclusivamente a idosos e portadores de necessidades especiais. Babei pela namorada do cara logo de cara. Foi cobiça à primeira vista. Era uma mulher mal-educada, mas, tinha sex appeal, caminhava na ponta dos cascos. “Comporte-se. Você é um homem casado”, mamãe advertiu. Para o meu azar, sentaram-se do nosso lado. O rapaz vestia a camisa do Tessalonicenses. Pelo menos isso de positivo, além da namorada voluptuosa. Pensei em alertá-lo que, provavelmente, não tinha percebido que a sua gata tava dando mole, muito menos, a placa de sinalização com os dizeres em letras garrafais; portanto, involuntariamente, ele estacionara a sua nave incrível numa vaga exclusiva destinada a velhos e aleijados, ou melhor, a idosos e portadores de necessidades especiais. Mamãe vetou a minha intromissão. Não valia a pena. “Esses dois não têm compostura”, ela disse. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Fiquei na minha. Será que mamãe foi garçonete antes de conhecer o meu pai?
Um cantinho, um violão. O show tava ótimo. Pedi pro cara tocar “Gente humilde”. O casal pediu a conta, sem muita gentileza. O boy irritou-se com o Lopes. Mandou chamar o gerente. Não ia pagar o couvert artístico. Definitivamente, aquilo não era da minha conta, mas, o rapaz comportava-se de uma forma tão rude, falava tão alto e com tal arrogância, que eu não tive como ficar alheio ao imbróglio. Ele justificou que não pagaria o couvert porque Chico Buarque era comunista, um traidor da pátria e ele, cidadão de bem, não ia ser complacente com o rombo que Chico e os seus cupinchas impuseram ao país, ao longo de 14 anos saqueando o erário. De tão impensável, fiquei pasmo com a justificativa. O coitado do gerente argumentou que Erivaldo Néli, veterano cantor de churrascarias, nunca tinha sido comunista na vida, aliás, apesar de tudo, ele até cria em Deus, era evangélico e vivia exclusivamente da música. Ou seja, o cachê vilipendiado faria falta.
O rapagão esbravejou que não pagaria a droga do couvert nem por decreto presidencial. Para completar, mandou tirar da conta a gorjeta do garçom também. Não era obrigado a pagar os 10% da taxa de serviço, tendo em vista que já tinha se chateado demais com aquela situação. Pra finalizar, prometeu descarregar sua ira denunciando o estabelecimento nas famigeradas redes sociais. Todo mundo percebeu que aquele era um caso perdido. Ninguém mais se dispunha a ponderar com o jovem. O Lopes queria mesmo era enfiar-lhe uma faca na barriga, como fizeram a Mojo Filter. Mas, carne podre não se salga. O rapaz pagou a conta da maneira que quis pagar e saiu arrastando a namorada pelas mãos. Era linda feito um troféu da Libertadores.
Decepcionado como um goleiro que tomou um frango, o Lopes me serviu outro chope de colarinho alto. A vida, às vezes, fica uma delícia. Atendendo aos pedidos de mamãe, Erivaldo Néli cantou “Apesar de você”, como se lutasse por um prato de comida, cerrando os olhinhos e fechando com chave-de-ouro esta crônica que nem ficou lá essas coisas.