A Procissão do Fogaréu e seus Farricocos encapuzados (que representam, em vestes medievais, soldados romanos), empunhando impactantes tochas, a singrar a madrugada soturna da Quinta-Feira Santa na Cidade de Goiás (ou Vila Boa, como preferem os filhos da primeira capital do Estado), compõem um quadro bastante conhecido no imaginário do povo goiano. Essa tradição católica é parte integrante da Semana Santa, e sua origem e formatação atual remetem a padres ibéricos e a um Estado de Goiás longínquo, localizado no meio de lugar nenhum, isolado, e totalmente distinto do que é hoje.
Pioneiros e corajosos homens de fé trouxeram para o sertão goiano, por volta do século 18, o costume de representar o início da “Via Crucis” de Jesus Cristo em forma de procissão, na qual gente preponderantemente mestiça e negra vestia-se com os trajes típicos de verdugos para representar os algozes de Cristo, cuja presença é simbolizada no estandarte que lidera a comitiva. Findada a instituição da Santa Ceia e eucaristia, os farricocos prendem Jesus, levando-o ao início de sua Paixão. Há mais de dois séculos a encenação é acompanhada por boa parte da cidade (atualmente por muitos turistas, também) que rememoram e refletem sobre as dores do Redentor.
Os que não conhecem profundamente a história dos rincões de seu próprio país, mas conhecem muito bem as tenebrosas e insólitas histórias das terras estadunidenses, costumam fazer bastante confusão e comentários ignorantes. Inegavelmente, existe uma intrigante semelhança visual entre os trajes da Ku Kux Klan e os dos farricocos no Fogaréu. Suas vestimentas, muito provavelmente, compartilham a mesma origem, remetendo aos algozes da idade média e renascença, época em que os executores das penas capitais usavam algo semelhante para esconder sua identidade.
Nos EUA, contudo, essa ideia sempre foi desconhecida — ou bem dissimulada. Em Goiás, porém, por se tratar de uma encenação na qual os farricocos representam efetivamente os perseguidores do Cristo, essa noção de que os mascarados são algozes sempre esteve presente nos livros e trabalhos que narram a origem da Procissão do Fogaréu, mesmo que não tão difundida entre todos os participantes. Os olhos e corações ávidos por apontar dedos e encaixar absolutamente tudo em uma cosmovisão específica perdem o que há de mais precioso nessa comparação entre Farricocos e KKK: o campo que as transcende.
No norte dessa imensa América, os sanguinários grupos supremacistas brancos, como a Ku Klux Klan (KKK), espalharam o terror, perseguiram negros e produziram os malignos e estranhos frutos narrados na composição de Lewis Allan, “Strange Fruit”, cantada na bela voz de Billie Holiday. A música fala sobre os assassinatos de toda uma população, enforcada barbaramente nas árvores do Sul dos Estados Unidos, ou nelas dependurada pós-morte, gerando a macabra imagem retratada na canção, que traz uma sensação tão soturna quanto as Quintas-feiras Santas à noite em Vila Boa de Goiás.
Apresentado o significado da procissão, sob a ótica aqui narrada, basta um pouco de sensibilidade para vislumbrar seu fortíssimo e inegável nível simbólico. Para tanto basta comparar a singela tradição da Cidade de Goiás com a tenebrosa KKK, cujas perseguições raciais foram capitaneadas, na verdade, por aqueles que se vestiam como os inimigos da cruz — e que inclusive queimavam cruzes e matavam pessoas por motivos torpes e de formas brutais e desprezíveis. Nesse contexto, então, a pequena noite de Goiás agiganta-se; pois, dessa maneira, a cruz de Cristo ilumina o indelével e desmensurado sofrimento da população negra norte-americana.
O vislumbre, entrevisto na esfera física das vestimentas, possui, no campo semiótico, uma expressão muito mais profunda e dilacerante da razão superficial e muito além da piadinha advinda de sua primeira visão. Quando a modesta tradição goiana que encena, há séculos, a perseguição de Jesus Cristo, é universalizada a ponto de ser comparada às tragédias relativamente recentes e aterradoras ocorridas há pouco mais de 60 anos nos Estados Unidos — então marcadamente racistas, com leis cruéis que segregavam a própria população —, simbolicamente o que se faz é iluminar a tragédia americana no que é, para os crentes, a fonte transcendente do mistério do sofrimento humano, o Cristo. Sim, a tradição cristã não ousa ditar os “porquês” do que, na maioria das vezes, não tem explicação, o sofrimento qualificando-o, tantas vezes, como mistério. Sob essa perspectiva, a cruz de Cristo é a maior lição de amor que a humanidade já contemplou, e na qual se deve despejar o que a razão não alcança, principalmente os sofrimentos descomunais. Esse é o ponto fundamental, e de difícil contemplação pelos que não têm fé.
A relação visual entre os farricocos e a KKK não é nada se comparada à relação real entre os dois eventos: em terras goianas os encapuzados representam os possessos que foram algozes do Deus-Homem, nos USA são os perseguidores e executores de seu próprio povo, inocente, negro e cristão. Em ambas as perseguições, deparamo-nos com o martírio sem culpa alguma. Os farricocos demonstram-nos, para além de uma bela e louvável tradição vilaboense, que a “Strange Fruit” americana e a Cruz de Jesus estavam, estão e sempre estarão muito mais próximas do que as vãs percepções possam conceber.