Crônica de Marcos Fayad publicada na Revista Bula em setembro de 2009
Outro dia recebi um artigo que um amigo escreveu sobre as homenagens prestadas a dona Amália Hermano que eu conheci quando cheguei do Rio. Ela cuidava de orquídeas, mas andava desanimada com sua arte. Comprei uma obra dela que reclamou muito de como os goianos ignoravam suas esculturas. Não se sentia valorizada aqui e me dava conselhos sobre minhas expectativas de voltar pra minha terra pra fazer arte. Achava que eu ia me decepcionar. Acertou na mosca: nunca me senti valorizado aqui como o era no Rio ou ainda o sou em outros países como Portugal e Espanha. Queria ser amado e valorizado pelas pessoas da minha terra.
Já criei a partir de Goiânia mais de 25 espetáculos e continuo tendo que lutar mês a mês pra conseguir pagar continhas de água, luz, telefone e há meses em que meus irmãos pagam por mim — uma vergonha indescritível, mas que escancaro aqui pra que o leitor saiba um pouco mais sobre o assunto que pretendo abordar.
Em 2002 estreei uma adaptação que fiz de dois contos incríveis de Gil Perini e intitulei o espetáculo de “Voar…” que jamais levantou voo nesta cidade, mesmo tendo feito temporada de um mês num teatro de 600 lugares em Lisboa, sempre com casa cheia, críticas fabulosas, público emocionado nos debates pós-espetáculo e depois ser assistido com casas cheias no Porto e Coimbra. Aqui já tentei quatro temporadas do mesmo espetáculo e o dia que mais tive público eram 27 gatos pingados. Quem é humilhado assim sabe com precisão certos detalhes da bilheteria. Hoje compreendo exatamente na pele e no coração o que conversei com dona Amália naquela tarde. Os intelectuais daqui adoram homenagear, vira e mexe homenageiam alguém que foi literalmente ignorado em vida.
Posso citar os mais próximos de mim: a Cici Pinheiro que jogaram no ostracismo e que desejava ardentemente continuar fazendo sua arte não conseguia nenhum apoio ou patrocínio de alguma empresa; o Otavinho Arantes que era até humilhado enquanto era vivo, debochavam dele como se fosse um louco; o João Bênio, que eu não conheci, certa vez disse a um publicitário que a desvalorização que sentia pela sua arte aqui é que o mataria. Matou mesmo. Precisou manter um pequeno restaurante pra sobreviver porque de sua arte não podia esperar nada.
Mas todos esses foram e são muito homenageados depois de mortos. A Cici Pinheiro ganhou da Secretaria Municipal de Cultura um teatrinho de 80 lugares com seu nome — coitada, era o que mais temia quando viva. É o que eu mais temo hoje: que algum idiota entre as centenas que falam mal de mim, invente de colocar meu nome numa dessas salas lúgubres da área cultural. Isso me causa asco e pânico ao mesmo tempo. Sei que corro este risco porque se hoje me hostilizam e dizem que sou um cara de temperamento difícil entre outras agressõezinhas baratas, imagino que depois que eu morrer vão descobrir que eu era um cara maravilhoso que fez muito pela cultura. Hipócritas nunca faltaram em sociedade nenhuma, convenhamos.
Consola um pouco ter lido que artistas como Michelangelo ou Leonardo da Vinci eram tidos por seus pares e detratores como pessoas difíceis, intratáveis, loucos de gênios fortes, esquisitos mesmo… e quando digo que me consola não é porque tenho a pretensão de me comparar com esse gênios maravilhosos da humanidade, claro, mas porque me pergunto: onde estão esses detratores? Que nomes tinham esses caras que falaram mal a vida inteira de Da Vinci ou Michelangelo — sumiram no tempo. E os dois grandes gênios não precisam de nenhuma sala com seus nomes pra serem lembrados, basta olhar o que fizeram. São eternos. Como já é eterno o fundador da cidade de Goiânia, não precisava pagar o mico de ser homenageado numa ridícula estátua equestre do século 18 como se assim fosse ser mais lembrado pelas futuras gerações. Coitado do dr. Pedro.
Não disse nada de original nesse artigo, o Nelson Cavaquinho junto com seu amigo Guilherme de Brito já tinha cantado essa pedra há anos:
“Sei que amanhã
Quando eu morrer
Os meus amigos vão dizer
Que eu tinha um bom coração
Alguns até hão de chorar
E querer me homenagear
Fazendo de ouro um violão
Mas depois que o tempo passar
Sei que ninguém vai se lembrar
Que eu fui embora
Por isso é que eu penso assim
Se alguém quiser fazer por mim
Que faça agora
Me dê as flores em vida
O carinho
A mão amiga
Para aliviar meus ais
Depois que eu me chamar saudade
Não preciso de vaidade
Quero preces e nada mais.”
Mas inda mais bela que essa letra é uma história que o escritor uruguaio Eduardo Galeano conta:
Os índios Shuar que vivem na selva da Amazônia equatoriana estavam chorando muito alto e sentidamente a avó moribunda. Choravam sentados ao lado dela, diante da sua agonia. Daí ele percebeu que a velhinha ainda estava viva, apesar de agonizante. perguntou a um dos índios:
Por que choram na frente dela, se ela ainda está viva?
E os que choravam responderam: Pra que ela saiba, antes de morrer, que gostamos muito dela.