O evangelho segundo a primeira garota que está sentada ali na fila

O evangelho segundo a primeira garota que está sentada ali na fila

A semana é santa, ninguém é santo e quem anda à flor da pele é o danado-do-capeta. Recos do exército brasileiro fuzilaram com 80 tiros um brasileiro-de-cor que trafegava com a família pela Rua da Amargura, no Rio, um trajeto que ele conhecia de cor e salteado. O capô ficou todo perfurado. Abilolados, os caras da polícia técnico-científica xingavam a todo instante sempre que perdiam a conta dos buracos na lataria. “Pra que tanto tiro assim? Pra que tanto preto assim?”. O major ficou bastante irritado com o destacamento. “Dos males, o menor, senhor”, minimizou o cabo. “Poderia ter sido um Monza com uma loira dentro.” Caiu um toró de arrancar tatu da toca. Choveu mais sangue numa tarde do que o esperado para o mês inteiro. A enchente de coágulos entupiu os bueiros e o povo da cidade submersa emergiu noutras prioridades, como tirar o próprio cu da reta.

Não é o fim da picada, mas, ele está próximo e a quaresma, quem diria, já tá terminando. Eu como carne de porco, ardo no inferno, mas, não engulo essa história. Ando caidinho pela Venusdete. Mais do que por pudim. Isso pode parecer insignificante, mas, não é. Não para um aficionado por sobremesas. Ela era a primeira garota sentada ali na fila do galpão de tratores em Mandagastar. Fizemos um show e tanto naquela noite. Raul e os Inauditos. Tinha uns 30 caipiras na plateia, nuvens de grilos e muita bosta de vaca. Encorajada a subir na carroceria do caminhão até a coxia improvisada com baixeiros, ela pediu “Toca, Raul”. Daí eu toquei uma pra ela. Foi foda. O amor é uma coisa foda, vocês já sabem. Desde então, sentimos aquela química de que tanto falam os engenheiros químicos e passamos a trocar os fluidos, a entrosar os micróbios e a ludibriar os gametas.

Estamos morando dentro de um trailer que nem rouxinóis na gaiola, só que a gente sai na hora que bem entende. Ela lambe o leite-com-rum que despejo no pires. Digo assim “Venusdeste, tira logo essa lingerie que o mundo tá parecendo mais desgraçado do que a média dos últimos trezentos e cinquenta mil anos”. Sábia como um sabiá-laranjeira; nua, livre e leve como uma ave deve ser, ela pousa em mim, descasca mexerica, chupa os gominhos e comenta que eu, um amante quadrado demais para ser feliz, estou redondamente enganado. “Mas, e o fuzilamento do moço? A vítima era músico. O sujeito era apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e que tocava como poucos o repertório precioso do falecido Belchior. Para completar o enredo, nada mais irritante para a elite branca: o dito-cujo era negão e passeava de carro com a família pela orla oceânica.”

Freando a volúpia vulcânica, Venusdete, a mulher zarolha, de estatura mediana e panturrilhas grossas, por quem eu me apaixonara, completa o simplório raciocínio dizendo que o ser humano sempre foi, em qualquer tempo e lugar, em condições normais de temperatura e pressão, o mais cruel e destrutivo animal do planeta. Nem Jesus Cristo escapou da sanha cruel dos homens, tendo sido traído, preso, torturado e crucificado pelos romanos, que eram os estadunidenses daquela época.

Venusdete parece mais culta e inteligente quando bebe, mais do que a maioria das garotas com quem eu já forniquei sobre a cama de fórmica. Há formigas pregadas no sêmen do assoalho. Assuo o nariz. Aumento a dose de rum no leitinho. Isso traz a verdade. Ela agradece, ronrona e destrava a língua, dizendo que, noutra encarnação, ela tinha sido um centurião romano que, inclusive, estava presente na espetacular crucificação do Cristo, controlando os ímpetos da multidão, coibindo os mais exaltados de atirar pedras na cruz e de instilar salmoura sobre as chagas do INRI. Ela está bêbada, doce e desastrada. Tropeça em Henry, o cágado. A cena macarrônica é hilária. “Mais louco é quem me diz”, ela retruca com a boca frouxa de álcool e a saliva escorrendo pelas beiradas.

Retiro-a do colo com a delicadeza cabível a um pássaro que canta e a uma gata que mia. Desligo os “Mutantes”, saco o banjo e me esbanjo a compor uma balada animal que bem poderia se chamar “Que país é esse”, mas, acabo depreendendo que alguém já tinha composto coisa do gênero. Então, inspirado num roqueiro baiano que, por sinal, é meu xará, batizo a obra como “O evangelho segundo a primeira garota sentada ali na fila”. Ela mal se contém em pé, mesmo assim, pede “Toca, Raul”. O resto vocês já sabem. Sei que vocês são bons em matéria de amar, mesmo nas temporadas mais inóspitas, quando o mundo parece literalmente virado do avesso.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.