Enterrem meu coração na curva da Barão de Itapetininga
Gosto imensamente do comércio livreiro. Não apenas da busca e aquisição de livros, mas também da maquinaria do sistema, aqueles usos e costumes comerciais que são passados entre gerações, e é por isso que me envolvi tanto com esse mundo que a minha vida se confunde com os meus livros — se tudo o mais me faltar, eu ainda os terei (ou são eles que me têm?). É algo que toma tempo e envolve conhecimentos às vezes arcanos: ter contatos, participar de associações (no meu caso, a Confraria dos Bibliófilos do Brasil), fazer pesquisas, ler catálogos, essas coisas. “I know a guy who knows a guy who knows a guy” é conhecimento útil nessa luta (que de vez em quando exige golpes abaixo da cintura). E há a etiqueta própria dos antigos comerciantes, aqueles que sabem o gosto de cada freguês e oferecem a eles “a honra da primeira oferta”. Elegante, não? Se cada família é infeliz a seu modo, como queria Tolstói, também cada bookaholic tem as suas peculiaridades e cacoetes (o degas aqui gostando de livros autografados pelo autor mais do que livros antigos e, estranhamente, também lutando para ter todas as primeiras edições de o “Romanceiro da Inconfidência”). Esta tem sido a faina da minha vida — e mil vezes eu a viveria.
E eis que li, no “Estadão”, uma notícia que me alentou num dia muito carregado. Os descendentes de Líbano Calil, da grande Livraria Calil de São Paulo, buscam vender a biblioteca do pai, valiosíssima, talvez para alguma universidade ou instituição cultural. Onde estão os empresários que a poderiam comprar e doar?
Estive com o velho Líbano, creio, uma única vez, há coisa de uns trinta anos. Por motivos que não interessam aqui, fiquei muito tempo sem frequentar sua livraria, para mim a melhor de São Paulo (e ainda há o plus da localização: ela fica no belíssimo — sim, belíssimo — centro da capital paulista, na Barão de Itapetininga). Lá retornei há uns três ou quatro anos e, nos seus labirintos, escolhi uns tantos livros excepcionais, entre eles “O Direito do Amazonas ao Acre Setentrional”, um estudo jurídico de Rui Barbosa, encadernado finamente e que eu pretendia destinar a um amigo no seu aniversário. Na hora de pagar, veio o constrangimento: os cartões haviam ficado no hotel. A senhora Maristela Calil, filha do patriarca Líbano, não se abalou: “Leve os livros e pague depois”, ela me disse. “Mas embarco hoje para Goiânia”, retruquei, e ainda assim os livros vieram comigo. Evidentemente, transferi o valor assim que pude.
Sobre a biblioteca do pai, o que me salvou o dia foi saber como ele a formou: apaixonado por livros, ele separava uns tesouros a cada leva que comprava para revender. “Um pra eles, dois pra mim, um pra eles, três pra mim…” Juntou quase 15 mil livros (a livraria, dizem, teria mais de 400 mil). É o Céu. Quando eu morrer, enterrem meu coração na curva da Barão de Itapetininga.
Pois rezo e peço graças e bênçãos a essa família que ama os livros, ao patriarca que montou uma biblioteca de livros que, bem sei, fariam seu coração sangrar se os revendesse separadamente, aos irmãos que ainda mantém a impecável livraria no lugar de sempre e à filha que, mesmo não se recordando de mim, deixou-me levar vários livros sem pagamento imediato (ela não me pediu nem mesmo um contato!), ajudando-me a atulhar um pouco mais meu apartamento e fazer feliz o amigo que recebeu o Rui Barbosa, tornando aquele um instante memorável — “nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”. Deo gratias.