Na infância, entre as décadas de 1960 e 1970, eu e meu primo Paulo Henrique Fagundes, hoje um excelente dentista (na nossa Porangatu), líamos, com imenso interesse e prazer, livros sobre o faroeste americano (por vezes, incluía o México). Eram livros de bolso. Andávamos quilômetros em busca dos opúsculos. O escambo era a regra, mas às vezes eu não queria desfazer de algumas obras sobre fatos que aconteciam em Dodge City, Abilene e Dakota. Daria parte de min’alma para ler mais uma vez uma história de Marcial Lafuente Estefanía — o meu Graciliano Ramos de então. Pensando bem, não daria, porque vendi minha alma para o autor de “Vidas Secas” — o mais belo, doloroso e, de certo modo, redentor romance do Português Brasileiro. Mas gostaria pelo menos de folhear um relato sobre os homens valentes do Oeste americano e suas amplas conquistas. Os “fatos” eram quase sempre os mesmos, contados de maneiras semelhantes, mas não necessariamente iguais. Um homem chegava na cidade, um lugar rústico de homens bravios (como o Shane de Alan Ladd), por vezes desonestos e sempre violentos, matava alguns criminosos ou poderosos do lugar e ia embora. Faltou dizer que, às vezes, se casava com a jovem mais bela da região. O homem eventualmente era da lei — não raro era um pistoleiro que, atuando ao lado do bem, se redimia e levava a mocinha ao altar. Outras vezes era um ranger disfarçado.
Eu e Paulo, siderados pelas histórias, caminhávamos pelas ruas quase sacando nossas armas imaginárias. Cheguei a ser repreendido por professores porque escondia o bolsilivro dentro dos livros didáticos e fingia que estava estudando. Estava, sim, mas não aquilo que era cobrado pela mestra. Uma vez, embora a teacher fosse um doce, levei uma reguada por causa de Marcial Lafuente Estefanía. Lembro-me que fechei o livro, que foi tomado e devolvido depois da aula. “Da próxima vez, conto para a dona Zinha ou para o seu Raul.” Zinha e Raul são meus pais. Raul era implicado com minhas leituras, sobretudo porque eu às vezes desaparecia — à cata de livros de faroeste ou de cordéis (nordestinos me emprestavam, porque sabiam que eu não tinha dinheiro para comprá-los. Lembro-me que troquei dois cocos por dois livros de cordel de Cancão de Fogo e de Pedro Malazartes, os quais eu lia… e ria, até gargalhava). Quando a lente citava meu pai, que era brabo e batia de cinto — as pernas ficavam vermelhas por dias —, eu passava de uma a duas semanas sem levar livros de bolso para a sala de aula. Depois, eu esquecia das ameaças e, sobretudo, das “pisas” — e voltava a levar os livrinhos para as escolas Gercina Borges Teixeira e Porantécnica. É provável que, se a professora perguntasse qual era a “maior” cidade americana, eu dissesse: Abilene. Talvez Dodge City.
Escritor nasceu em Toledo, na Espanha
Há algum tempo, fiquei curioso por saber quem era Marcial Lafuente Estefanía — que eu apreciava quase na mesma proporção que gostava de Monteiro Lobato e José Lins do Rego. Descobri que nada sabia a respeito do autor. Inicialmente, pensei que era mexicano ou até um brasileiro que escrevia com nome estrangeiro. Recorri à Wikipédia e encontrei uma biografia não muito extensa, mas razoável. Adoraria ler uma biografia decente — e até indecente, desde que explicite o escritor e o indivíduo — do autor, que, possivelmente, é do time “B” ou, até, “Z”, mas, na minha avaliação de menino-adolescente, era “dos bons”.
O espanhol Marcial Lafuente Estefanía nasceu em 1903 e morreu em 1984, aos 81 anos. Ele usou, além do nome, vários pseudônimos (alguns deles femininos) — o que eu não sabia. Era expert em “novelas”. Novelas, no caso, são “romances”. Ele “é considerado o representante máximo do gênero em espanhol”. Não tenho provas, mas arrisco a dizer que certamente é o maior do gênero em qualquer língua (não me lembro se as obras eram bem traduzidas, o que posso dizer é que eram legíveis). O autor escrevia e publicava um livro por semana.
Segundo a Wikipédia, os romances publicados sob o nome de Marcial Lafuente Estefanía eram escritos pelo autor e por seus filhos, Francisco e Federico, e até pelo neto Federico. Como a escala era industrial, a informação é crível. Francisco María Lafuente Beorlegui e Federico María Lafuente Beorlegui são os filhos do casal María Luisa Beorlegui Carril e Marcial Lafuente Estefanía. O casal vivia em Madri, mas o escritor era apaixonado por Arenas de San Pedro (Ávila).
A Wikipédia relata que Marcial Lafuente Estefanía era filho do advogado, jornalista e escritor Federico Lafuente López-Eliás, autor do livro “El Romancero del Quijote”, de 1916. Com o pai, aprendeu “a amar o teatro clássico do Século de Ouro, que chegou a conhecer muito bem”.
Apesar da influência paterna, Marcial Lafuente Estefanía optou inicialmente por estudar engenharia industrial e trabalhou na Espanha, na África e nos Estados Unidos. “Entre 1928 e 1931, percorreu grande parte dos Estados Unidos, o que serviu para ambientar suas histórias, cujos detalhes de atmosfera e localização são rigorosos”, anota a Wikipédia. Talvez pelo rigor e pela precisão, cheguei a pensar que o autor era americano ou mexicano. Ele conhecia como poucos os Estados Unidos — a história do Oeste. Marcial Lafuente Estefanía morreu de pneumonia. Foi enterrado no cemitério de Arenas.
Guerra Civil Espanhola, a última guerra “romântica”
Entre 1936 e 1939 deu-se na Espanha a última guerra tida como romântica, que, de romântica, nada tinha. A esquerda stalinista matava franquistas-fascistas e também anarquistas e trotskistas (mesmo meros suspeitos de pertencerem aos quadros do anarquismo e do trotskismo eram assassinados). A mortandade na Guerra Civil Espanhola foi terrível. Lá estiveram correspondentes estrangeiros de vários países, como George Orwell, da Inglaterra, Martha Gellhorn e Hemingway, dos Estados Unidos. Vários brasileiros, como José Gay da Cunha e Apolonio de Carvalho, lutaram na terra de Cervantes e García Lorca (assassinado aos 38 anos por franquistas).
A Wikipédia afirma que Marcial Lafuente Estefanía lutou na Guerra Civil Espanhola, ao lado dos republicanos, na artilharia. O jornal “Abc” sugere que era tenente (chegou a ser comissário da Frente Popular). Atuou, com firmeza, na frente de Toledo. Com o fim da guerra, embora adversário dos franquistas, decidiu não se asilar noutro país, mas chegou a ser preso várias vezes. Na prisão, começou a escrever em pedaços de papel que encontrava. “Comecei a escrever praticamente num rolo de papel higiênico”. Ele escrevia a lápis, porque não havia caneta na cadeia.
“Durante a guerra, o escritor e dramaturgo Enrique Jardiel Poncela deu-lhe um conselho: ‘Escreva para que as pessoas se divirtam, pois é a única forma de ganhar dinheiro com a escritura’.” A Wikipédia sublinha que, “desde o início, o autor buscou as amenidades, prescindiu de longas descrições e trabalhou os diálogos e a ação rápida”. “Nasci para o western em 1939 porque me ofereceram uma hospedagem gratuita no ‘hotel’ Ocaña, um cinco estrelas” (na verdade, o hotel era uma prisão), afirma o best seller transnacional.
Na cadeia, escreveu seu primeiro livro, “La Mascota de la Pradera”. A obra foi publicada em 1943 — quando já havia sido libertado pela Justiça — pela Ediciones Maisal. “Não aspiro à Academia. Sou lido pelos adolescentes e adultos. Os mais velhos têm vergonha de admiti-lo”, afirmou Marcial Lafuente Estefânia. Ao todo, escreveu 2.600 “romances do Oeste” (não tinham mais de cem páginas). A Wikipédia revela que, para escrevê-los, “inspirou-se no teatro clássico espanhol do Século de Ouro. Substituiu os personagens do século 17 por arquétipos representativos do Oeste” [americano].
As histórias são violentas, segundo a Wikipédia. São mesmo? São, em parte. Na verdade, ante o que se publica hoje, são até leves. Mas o Oeste era mesmo violento e os livros de Marcial Lafuente Estefanía não edulcoram os fatos. Matava-se por qualquer coisa. Os pistoleiros eram cruéis e até os “vingadores” da lei não ficavam atrás. Os pequenos romances inundaram a Espanha, a América Latina — a Wikipédia não menciona o Brasil, desconhecendo que o autor chegou a ser uma “febre” no país — e, pela temática, os Estados Unidos. A Universidade do Texas gravou suas histórias para que cegos pudessem escutá-las. Motivo: faziam um sucesso extraordinário. Uma curiosidade: ele escolhia os nomes de seus personagens numa lista telefônica dos Estados Unidos. Curiosamente, quando mais velho, tentou publicar um romance sério, “El Maleficio de Toledo”, “resultado de seus notáveis conhecimentos históricos sobre sua cidade natal” (Toledo). Mas não obteve êxito. Seus leitores queriam livretos com histórias do Oeste americano.
Proibido de trabalhar como engenheiro pelo governo do general Francisco Franco, de matiz fascista, a Marcial Lafuente Estefanía restou a escrita de livros. Pela Editora Cíes, de Vigo, começou a publicar histórias policiais e histórias românticas. Seus primeiros romances foram escritos com o pseudônimo de Tony Spring e Arizona. As obras românticas eram assinadas com o nome de sua mulher, María Luisa Beorlegui, e de Cecilia de Iraluce. Usou também os pseudônimos Dan Luce e Dan Lewis. As obras sobre o western eram assinadas por ML Estefanía e, depois, por Marcial Lafuente Estefanía. Eram publicadas pela Editora Bruguera. Ele e Corín Tellado (que também li, assim como leu Mario Vargas Llosa) eram as estrelas da editora.
Como a Wikipédia quase não discute a participação de Marcial Lafuente Estefanía na Guerra Civil Espanhola, recorri ao texto “Marcial Lafuente Estefanía: un ‘ángel rojo’ em Chamartín contra as checas republicanas”, do “Abc” (de 13 de fevereiro de 2019). A base do texto do jornal de Madri é uma entrevista do escritor a “Blanco y Negro”, sob o título de “Escritor famoso, hombre desconhecido”, concedida em 1º de março de 1978, há 41 anos.
Preso pelos franquistas, Marcial Lafuente Estefanía foi avisado às 19 horas que às 23 horas seria fuzilado. Mas escapou. Mas admite que ficou com muito medo. O fato se deu em julho de 1941. Acabou condenado a 20 anos de prisão. A Justiça admitiu que, mesmo estando ao lado dos republicanos, não agiu de maneira cruel com os adversários. Em seguida, a pena foi comutada para 12 anos. Posteriormente, o franquismo o condenou a prisão domiciliar. A rigor, ficou dois anos e meio preso.
Durante a Guerra Civil Espanhola, por ser anarquista e conselheiro da CNT (confederação anarquista), Marcial Lafuente Estefanía não era bem visto pelos comunistas, que eram controlados pelos homens de Stálin. Ele descobriu certa feita que vários homens que seriam fuzilados, sem direito a um julgamento justo — sequer eram ouvidos —, não eram franquistas, e sim desafetos políticos dos stalinistas. Quando quase todos se calavam, o jovem anarquista posicionou-se contra os assassinatos. Descobriu que os comunistas, que lutavam pela hegemonia no campo republicano, não matavam apenas franquistas; durante a luta, iam eliminando “futuros” adversários, no caso de vencerem a guerra. A guerra não era apenas contra Franco, do ponto de vista tático-estratégico do stalinismo, mas também contra democratas, anarquistas e trotskistas. Marcial Lafuente Estefanía insurgiu-se contra tal viés político. Pesquisas indicam que salvou até franquistas — gente comum, que lutava na guerra, mas sem nenhuma ideologia.
Embora tenha salvado vidas, dos campos republicanos e franquistas — era, acima de tudo, humanista —, Marcial Lafuente Estefanía sempre tratou sua participação na Guerra Civil Espanhola com discrição. Livrou dezenas de pessoas das garras da polícia secreta de Stálin, mas nunca fez alarde disso. Não se preocupava com quem pensava diferentemente dele e seus aliados de esquerda. A liberdade era seminal para o jovem anarquista.
Marcial Lafuente Estefanía é, como escritor, do quinto time, é certo. Mas encantou minha infância e parte de minha adolescência. Ele é, em definitivo, o John Ford dos micros livros de faroeste.