Receita para salvar o mundo sem perder o dia

Receita para salvar o mundo sem perder o dia

De repente, a moça que caminha rumo a seu dia de trabalho empaca na calçada, entre os milhares de pedestres que vão e vêm apressados. Ela para como a comida que entala na garganta, como a pedra que estanca no curso do riacho, riscando desenhos na água em seu fluxo suave, e decide salvar o mundo.

Enquanto as ondas de pessoas passam com pressa, ela para e olha. Postada sobre suas intenções, ela olha as pessoas. Pensa em como elas são engraçadas e sérias, magras e gordas, altas e baixas, negras e brancas e amarelas e vermelhas. Pensa em como se parecem e se diferem, se reúnem e se separam. E em como elas são, para além de qualquer detalhe, absolutamente iguais. Ela vê ali, no tempo interminável de um instante, como pessoas carregam outras pessoas nos braços e nas lembranças. Como caminham com pressa buscando aqui, achando ali, perdendo acolá.

Então ela limpa a garganta e se põe a dizer coisas fundamentais para quem espera salvar o mundo. E fala a todos e a ninguém. Fala de um jeito bonito, emocionado e sincero.

Fala de suas dores, todas elas, das primeiras, na infância, às de hoje e de amanhã. E fala dos amores. Dos breves e ligeiros amores de segunda-feira aos encantos de toda a vida.

Ela fala do riso que lhe provocam as pessoas quando insistem em acreditar que o amor é algo que chega feito um ônibus, é só sentar e esperar que uma hora ele vem e para, encosta sem que você faça um sinal, e você entra e senta e abre a janela e aproveita a viagem olhando lá fora os pedestres, os carros, as casas e a vida para fora de seu amor. Fala em como se diverte com as pessoas que insistem em fazer do amor algo parecido com o cocô dos pombos que enfeitam os capôs dos carros estacionados e os bustos de pedra condenados à exposição eterna em praça pública. Olha aquela estátua, quem é mesmo?

Como quem explode as muralhas de pedra de uma represa maior que o mundo, ela fala sobre sua rotina de um dia depois do outro. Fala de suas contas atrasadas, de sua mãe e de seu pai, fala do gato cinza que aparece às terças e só às terças na porta de sua casa, e da verruga que ele tem entre os olhos e faz saltar sua pelugem, fala em seu pai e sua velha crença de que as jabuticabas saltam das árvores durante a noite para passear no quintal sem saber que nunca serão capazes de retornar aos galhos.

Para salvar o mundo, ela segue falando sobre as pessoas cheias de respostas para tudo, sobre os seres superficiais em busca de novas teses cheias de ar que as ajudem a boiar no naufrágio, fala nos cães sem dono, nos filhos sem pais, nas almas medonhas e tristes que baseiam suas vidas a fazer tristes as outras para se sentirem menos sós.

Fala nas duas lagartixas que ocupam os cantos sombrios de sua casa e passeiam à noite pelas praças de suas paredes. E de como ela as batizou de Romeu e Juzinha. Não Romeu e Julieta. Mas Romeu e Juzinha, como cabe às criaturas estranhas e pequeninas de graça grandiosa.

Sem pensar e sem medir, ela fala do que sente e do que ali está. E é como se, à saída de sua boca, as histórias e lembranças e ideias e angústias e tantos sentimentos se posicionassem em fila indiana, esperando sua hora de saltar e ganhar a vida como paraquedistas lançados à selva para a missão grandiosa de salvar o mundo.

Às mulheres e aos velhinhos e às crianças, aos gays e aos heterossexuais, a quem simpatiza e a quem odeia, aos pobres e aos ricos, aos que atacam e aos que defendem, aos que riem e aos que choram, aos que chegam e aos que partem, ela fala de uma só vez, em um só tom e numa só língua. Reúne todos eles em uma só audiência, sob a mesma classificação: gente.

Fala honestamente a todas elas. Fala até perder o assunto e a voz. Fala tudo. E ninguém a ouve Ninguém a vê.

Exceto o dono de um corpo enorme e apressado que a atropela com a barriga, a derruba no meio da calçada e desaparece na multidão.

Ela levanta com dificuldade, retoma o passo e segue seu caminho no fluxo. Pessoa que é. Na vida que aí está.

E entende, muito a contragosto, que não vai salvar o mundo. E que afinal também ninguém está pedindo para ser salvo.

André J. Gomes

É professor e publicitário.