Momentos finais. Discursos de improviso. A dor de sempre. Quem ria por último não entendia nada da vida. O povo se aglomerava em torno, cantando. Urubus na carniça. Decorridos noventa anos, o Horacinho finalmente ia descer ao buraco. Acostumado com os melodramas, um dos coveiros, ás da pá e da argamassa, assoviava “Ai se eu te pego”, enquanto levantava uma impecável meia-parede de tijolos, mais rápido do que o evacuar de um frango. Velório é sempre uma merda, todos concordavam, porém, ninguém arredava o pé. A vida é feita de rituais. Cada um tinha que se virar com os seus mortos. Era o castigo para os que permaneciam vivos.
Crianças são o cão. Horacinho uivou de dor até desmaiar combalido com um dos braços preso, moído entre a polia e a correia da serra circular. Ninguém soube explicar o que aquele guri, que era cego de um olho por causa de estrepe-de-laranjeira, fazia ali na serraria. Talvez, caçasse calangos. Meninos são seres cruéis que adoram matar as criaturinhas-de-deus.
Fato era que o pirralho teve o membro superior direito mastigado pela mandíbula gulosa da traquitana. Travado pelo esqueleto rijo, o motor fumou, o disjuntor caiu e os homens reclamaram que porra era aquela. Naqueles tempos, todos cagavam para desenvolvimento sustentável e causas ecológicas. Esses vernáculos sequer existiam. A regra era correr o correntão na mata virgem, derrubar árvore, faturar madeira. A princípio, houve uma irritação generalizada por causa do silêncio da máquina-de-tábuas, até que alguém voltou vomitando e dizendo que um tal de Horacinho estava preso na geringonça de fazer dinheiro.
Com um veloz sabor de almoço-azedo na boca, os operários conseguiram destravar as engrenagens, retirar o menino e levá-lo até o acanhado hospital do município, onde teve que ter o braço direito, que era o melhor braço do corpo, amputado pelo inseguro, porém, indispensável Doutor Jivago, o qual, graças ao Pai e à jurubeba, estava bêbado o suficiente para serrar o úmero com diligência, coragem e sem frescuras. Aos sete anos, Horacinho tinha ludibriado a morte pela segunda vez; a primeira foi ter sobrevivido ao mal-de-sete-dias. E logrou ser assim, com um único braço e cego de um olho que, nascido em Cu Alegre das Minas Gerais, ele ganharia o mundo.
Foi com um braço só, justamente o esquerdo, que era o mais lerdo do corpo, que ele foi adestrado pela mãe a fazer o sinal-da-cruz no peito e a se banhar sozinho com sabonete, bacia e cabaça. Mesmo lesionado, tomou pisa da progenitora quando deu piti, ameaçou Deus de morte e informou que nunca mais compareceria à escola, o antro educacional onde os coleguinhas já o tinham rebatizado de Cegueta, Joãozinho Sem Braço, Capitão Gancho, dentre outros apelidos depreciativos.
Foi cego de um olho e com um só braço que ele catou no gol do grêmio estudantil, tornando-se o goleiro menos vazado por três temporadas consecutivas. Ninguém operava milagres como ele. Com um braço só aprendeu a colocar minhoca no anzol, fisgar traíra e bater punheta no meio das bananeiras do quintal de casa. As formigas engoliam o néctar lambendo os beiços. E foi num baile do centro paroquial que o maneta ateu abarcou a cintura fina de Rosinha, a primeira namorada, que seria também a última. Tiveram uma prole de oito e viveram felizes para sempre, até que a morte os separou aos 90.
Foi com um braço só que brindou com pinga, aprendeu a dar tiro, esbofeteou vagabundo e atravessou a nado o rio Paranaíba, ganhando cem cruzeiros numa aposta. Ninguém que enxergasse tão bem e possuísse os dois braços intactos cria que ele conseguisse completar a façanha. E foi com um só braço que ele acenou aos conterrâneos de dentro da Maria Fumaça, juntamente com a sua Rosinha, rumo a Goiaz. Com um único braço pediu carona e emprego. Foi com o par de orelhas plenamente sãs que ele ouviu da boca do boçal reitor da universidade que ali naquela instituição superior de ensino não permitiam a entrada de indivíduos inválidos no curso de medicina.
Com o coração pulsando de determinação e raiva, acabou cursando veterinária, quando aprendeu a drenar postema, curar manqueira, castrar cavalo e acudir partos enviesados. Enfiava o único braço que ainda restava dentro da xoxota bovina até o talo, no limite da axila e puxava o bichinho pelas patas. Aquilo não era um a parto; era um show da vida. Foi com um braço só que discursou no plenário lotado como orador da turma, sendo foi aplaudido de pé por todos aqueles que ainda possuíam as duas pernas íntegras.
Foi com um único braço que assinou cheque, abriu champanha, votou pra presidente e enxugou a fronte até se tornar um homem velho. Foi com o braço sobrevivente que apertou, atabalhoadamente, a mão do abstêmio médico oncologista, o qual assentiu que, sim, era verdade, realmente, o aspecto daquelas imagens da ressonância fazia lembrar um punhado de caroços de pequi dentro do cérebro, porém, contudo e todavia, nada mais eram do que as metástases de um tumor da pior reputação que se tinha notícia na história da medicina humana. Ele, o doutor, sentia muitíssimo dizer aquilo daquela forma, mas, o certo é que ele, o Horacinho, morreria rápido como o cangar-de-grilo, com certeza, antes da enchente de São José.
Na mosca. Foi numa tarde lenta e chuvosa que ele morreu devagarinho, segurando pela mão a sua Rosinha, apagando, desligando, desacelerando, esfriando sem desespero e panaceia o corpo judiado pelas agruras do tempo, como se fosse ele próprio uma fumegante porção de doce de leite mineiro saído diretamente da panela de ferro.
Dedicado ao meu amigo Edson Pereira.