A autora de vários romances extraordinários, como “A Sibila”, “Os Incuráveis” e “Vale Abraão”, ganha, finalmente, uma obra que tenta explicá-la e à sua obra: “O Poço e a Estrada — Biografia de Agustina Bessa-Luís” (Contraponto, 503 páginas), de Isabel Rio Novo, doutora em literatura comparada. Trata-se de uma biografia não-autorizada.
Escrito em 1953, “A Sibila” é o romance que consagrou Agustina Bessa-Luís. Trata-se da história de Quina, uma personagem fascinante. A história não deixa de parecer um “romance de formação”. A mulher, espécie de adivinha — na verdade, é mais do que isto; embora seja uma mulher simples, é dotada de uma inteligência e uma perspicácia raras —, é, digamos, uma filósofa popular e uma self made woman. Basta-se a si? Não se casou, mas mantinha homens próximos, não para atendê-la sexualmente. O homem de sua vida, uma referência, como indivíduo mas não exemplo “empresarial”, era seu pai, Francisco Teixeira (homem de muitas mulheres). A mãe era uma “adversária cordial”, até se entenderem, sobretudo com a hegemonia de Quina na casa da Vessada. A linguagem da obra, com seus aforismos singulares, é uma das “personagens” deste livro tão bem escrito e formulado. “Vale Abraão” é uma releitura, das mais finas e sutis, de “Madame Bovary”, do francês Gustave Flaubert. A protagonista é Ema Paiva e seu marido é o médico Carlos Paiva. Isabel Rio Novo diz que a francesa Claudine inspirou a criação de Ema Paiva, uma mulher tão bela quanto forte, afirmativa, ainda que não teórica, não feminista. Mas não subordinava sua ação, mais do que seu pensamento, a ninguém, muito menos aos homens. Ela escolhia seus homens, ainda que mantivesse o casamento, e até sentisse ciúme do seu marido insosso.
Pai de Agustina Bessa-Luís morou no Brasil
A biografia relata que Artur Teixeira Bessa, pai de Agustina Bessa-Luís, morou no Brasil. No Rio de Janeiro, militou no submundo, “passando a viver no limiar, senão da delinquência, pelo menos da marginalidade”. Quando a escritora era jovem, não havia Tinder, então ela colocou um anúncio num jornal: “Jovem instruída desej. Corresp. c/pessoa intelig. e culta. Resp. Admin. Nº 61”. Surge Alberto de Oliveira Luís, que estudava Direito em Coimbra, e, sim, os dois se casaram e foram felizes (Alberto Luís morreu, aos 95 anos, em 2017). Quando menina, leu “O Guarani”, do brasileiro José de Alencar. “Pôs-se a lê-lo, ficando a cismar ‘naquelas terras onde bramiam os rios e aconteciam inundações pavorosas; e os coqueiros do rei eram tão altos como catedrais’”. Há outras referências ao Brasil. A autora amava o cinema, principalmente o ator-diretor Orson Welles.
A seguir, concentro-me no capítulo “Revelações da Sibila”, no qual se comenta “A Sibila” e a recepção crítica ao romance. Isabel Rio Novo, que às vezes mimetiza o estilo verbal da biografada — e escreve como prosadora, não meramente como pesquisadora rigorosa —, assinala: “Todo o indivíduo existe desde que nasce, mas há um momento na sua vida, um ato, um gesto, uma faísca, que, quando acontece, lhe credita a existência. (…) Esse momento na vida de Agustina: a premiação e a publicação de ‘A Sibila’”.
“‘A Sibila’ abriu-me as portas das letras”, disse Agustina Bessa-Luís. O romance foi concluído em 16 de janeiro de 1953 e a escritora inscreveu-o no Prêmio Delfim Guimarães, sob o pseudônimo de Stavroguine, o personagem do romance “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski (um de seus ídolos literários). “Agustina escrevera o livro por uma espécie de desafio, para tentar ganhar o prêmio, cujo valor era significativo. Nestas questões de concursos literários, aliás, Agustina ‘queria o dinheiro’, e nunca se coibiu de o admitir”, relata Isabel Rio Novo. O crítico literário brasileiro Álvaro Lins, professor da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Lisboa, participou do júri que concedeu o prêmio à escritora de 32 anos. O livro saiu, em 1954, pela Guimarães Editores. Depois, ganhou o Prêmio Eça de Queirós.
Mulher vencedora num mundo dos homens, a personagem “Quina” (Joaquina Augusta) é baseada em Amélia Teixeira Bessa, tia de Agustina Bessa-Luís. A escritora deu à mulher forte, inteligente e sutil o nome da avó paterna de Amélia e sua bisavó. Apesar do modelo, com características similares, Quina era Quina e Amélia era Amélia, ou, dito de outro modo, Quina era Amélia mas não só, porque também era Quina. Tão parecidas quando singulares. Instada a se explicar, Agustina Bessa-Luís praticamente expôs um credo literário que não desagradaria Erich Auerbach: “Para começar, [Quina] é uma figura de ficção porque permite que se imagine e se crie o tempo em que ela se move. E, por outro lado, é uma pessoa real. Viveu e morreu nos lugares que ainda hoje podem ser visitados, cerca de Vila Meã, onde a autora, ela própria nasceu. (…) ‘A Sibila’ é de todos; o que se ama merece repartir-se em mil versões que são uma verdade só: a da memória que se fez comum”.
A recepção crítica ao romance A Sibila
Vale transcrever um longo trecho do livro de Isabel Rio Novo, aguda leitora de Agustina Bessa-Luís, sobre “A Sibila”: “O romance não” possui “verdadeiramente uma história com princípio e fim, tão pouco uma cronologia sequencial, antes uma temporalidade da memória. (…) A estrutura narrativa” é “cortada por digressões que” tornam “sinuosa a história central de Quina. A intromissão constante da instância narradora na vivência das personagens” atribuía “a si própria uma outra condição inédita no romance português: não só a de ser uma voz narrativa, mas a de disputar um lugar de personagem entre as que ela própria recriava. Não” há “uma distinção de tempo entre quem” fala, “quem” recorda “e quem se intromete (…). A ideologia da voz narrativa e da personagem central não tendia para nenhuma solução social ou existencial, mas apontava para um vago amoralismo, que se limitava a expor a crueldade das relações humanas. E tudo isso era novo”.
A crítica contemporânea agradou-se do romance. Óscar Lopes assinalou que “A Sibila” era “um dos nossos romances simultaneamente mais regionalista, nacionalista e universalista”.
João Gaspar Simões ressaltou, na síntese de Isabel Rio Novo, “a estrutura aracnídea da narrativas, as histórias e as vozes entreçaladas, a aparente desordem e imperfeição que, com argúcia, o crítico filiava na prosa longínqua de Bernardim Ribeiro ou no caso mais próximo de Raul Brandão”.
José Régio anotou: “Felizmente, desta vez, a crítica foi quase unânime em louvar como excepcional esta obra que na verdade o é. E eis o que nos deve contentar, pois assim se congregaram, desta vez dois fenômenos igualmente raros: um, a aparição de uma obra de tal qualidade. Outro, o reconhecimento dessa mesma qualidade pela opinião mais ou menos consciente”.
Certos críticos apontaram alguns “defeitos”, como uma eventual “improvisação”, mas, no geral, a recepção foi positiva. Aceitou-se, como consenso, que “A Sibila” era uma obra-prima, que, aos 65 anos, guarda uma “jovialidade” — uma permanência — que impressiona. O romance nasceu canônico, tais o vigor romanesco e sua linguagem poderosa. A força que retira de personagens não intelectualizados e relativamente toscos lembra, quem sabe não vagamente, a prosa do americano William Faulkner.
Três anos depois da publicação do romance, António José Saraiva e Óscar Lopes, no livro “História da Literatura Portuguesa”, registram Agustina Bessa-Luís como “a personalidade mais notável dos últimos anos, pela exuberância, ainda incontrolada, do seu poder de evocação dramática e poética”.
António José Saraiva chegou a postular que Agustina Bessa-Luís, depois de Fernando Pessoa, era “a grande revelação, o segundo milagre do século 20 português”.
Eduardo Lourenço, espécie de Antonio Candido de Portugal, dada a excelência de sua crítica, destacou, aponta Isabel Rio Novo, “a revolução operada pelo romance ‘A Sibila’ no panorama das Letras nacionais, assinalando o ano de 1953 como um marco histórico entre duas épocas literárias”. O ensaísta destaca, sumariza a biógrafa, que “o significado mais profundo da obra fora o de ter inaugurado uma ‘literatura desenvolta’, ao impor ‘um mundo romanesco, insólito, veemente, estritamente pessoal, desarmante e tão profuso e rico, verdadeira floresta da memória, tão povoada e imprevisível como a vida, onde nada é esquecido e tudo transfigurado’”. O romance teria aberto as portas para a literatura de Almeida Faria e José Cardoso Pires.
Reinado da literatura feminina em Portugal
Isabel Rio Novo indica que “A Sibila” resolveu impasses da literatura portuguesa, “conciliando regionalismo e universalismo; encontrando na evocação do mundo rural substância para a análise das relações humanas e da relação do ser com a memória; anulando a velha oposição entre objetividade e subjetividade do narrador, através da intromissão de uma voz, a um tempo, onipresente e constante, mas distanciada e alheia a toda a complacência sentimental; revestindo as personagens de um sentido simultaneamente social e mítico-trágico; ou ainda reformulando os modos de representação da realidade, ‘que sem ser posta em causa, é subvertida na sua linearidade pelo momento de evocação que impõe a descontinuidade e um permanente deslize do vivido para o não vivido, do real para o sobrenatural”. O comentário deixa evidente que Isabel Rio Novo não é uma biógrafa convencional; ao contrário, é uma intérprete atenta da literatura de Agustina Bessa-Luís.
Citado por Isabel Rio Novo, o crítico Eduardo Lourenço apontou que “A Sibila” instalou “uma espécie de longo reinado da literatura feminina em Portugal”. “A escritora”, sumariza a biógrafa, “impunha um mundo da mulher até então subalternizado”. Os homens de “A Sibila” são mais divertidos e farristas, como o pai de Quina, o bon vivant Francisco Teixeira, mas são as mulheres que fazem o mundo girar. Elas, sobretudo Quina, são dominantes e os homens são quase seus vassalos. O “longo reinado de Agustina talvez constitua um dos grandes acontecimentos revolucionários, críticos e literários portugueses”.
Agustina Bessa-Luís não é feminista militante, mas, na prática, não escapa às modernas relações. “Quando Inês Pedrosa teve uma filha, Agustina telefonou-lhe a cumprimentá-la, mas, além dos parabéns, deu-lhe um conselho importante: ‘Agora vão começar a falar-lhe no casalinho, não vá nisso. É uma prisão que fazem às mulheres. Tomar conta de crianças dá muito trabalho, e depois não tem tempo para escrever. Olhe que no meu tempo era muito mais difícil ter só uma filha, e foi o que eu fiz”. Patrícia Reis recebeu um conselho: “Não deixe de fazer aquilo que tem de fazer. A família não é tudo”. Quina, personagem central de “A Sibila”, nem sequer se casou. Edipiana? Talvez. O pai gastava tudo e vivia na farra — caso parecido com o do pai da escritora —, mas Quina acumulava imóveis, joias e dinheiro, não se deixava enganar pela conversa mole dos homens e se tornou uma mulher poderosa e rica, ainda que não ostentasse. Adquiriu identidade, firmou-a e não era apenas a Sibila, a adivinha e a senhora dos bons conselhos (curiosamente, em termos de conselhos sobre negócios, um homem, Adão, era seu orientador, talvez um parceiro de conselhos).
Maior do que Saramago e Lobo Antunes
Na reportagem “Estudiosos criticam desdém do Brasil por autora portuguesa Agustina Bessa-Luís”, Marco Rodrigo Almeida, da “Folha de S. Paulo”, comenta a bronca que João Pereira Coutinho, colunista do jornal, deu “no mundo editorial brasileiro”. O intelectual português escreveu: “Mas como é possível só ter ouvido falar do maior gênio vivo da literatura portuguesa? Não é possível. Nem desculpável”.
A professora Anamaria Filizola, que escreveu uma tese de doutorado sobre a autora de “As Fúrias”, “O Mosteiro”, “Um Cão que Sonha” e “O Concerto dos Flamengos”, disse à “Folha”: “Agustina é o grande prosador da língua portuguesa do século 20”. Repare que a mestre não escreve “prosadora”…
Alcir Pécora, professor de teoria literária da Unicamp e crítico literário notável, afirma que Agustina Bessa-Luís é “muito superior” a José Saramago e António Lobo Antunes (os dois simbolizam o Fla X Flu da literatura lusa). Anamaria Filizola diz que o “tom digressivo” — eu diria, até filosófico — da prosa da escritora pode afastar leitores. Penso que, se não afastar, os leitores só terão prazer, tanto pelas histórias bem urdidas, como pelo modo como as conta, como se enrolasse e desenrolasse novelos.
Por que José Saramago ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, e não Agustina Bessa-Luís? Talvez pelo fato de que era de esquerda e a autora de “A Bela Portuguesa” não o é (ressalvo que T. S. Eliot e Mario Vargas Llosa, que não são de esquerda, ganharam o Nobel). “Seu discurso não é maniqueísta, não há nele nada de panfletário no sentido político. A predominância de uma literatura engajada, com repercussões no estrangeiro, a isolava nos meios culturais”, pontua, com propriedade, Anamaria Filizola.
No momento, aos 96 anos, Agustina Bessa-Luís vive reclusa, sob a proteção da família. Isabel Rio Novo não contou com o apoio da família da escritora para escrever o livro, o que dificultou em parte a obra, ainda assim, de raro brilhantismo e de uma delicadeza ímpar (mencionei apenas um capítulo e colhi informações rápidas de outros capítulos). A família, sua filha Mónica Baldaque, autorizou o historiador Rui Ramos a escrever a biografia. Espera-se que não seja uma hagiografia.
Numa biografia tão criteriosa, que explica tão bem a vida e a literatura, ressente-se da falta de fotografias de Agustina Bessa-Luís, de sua família e de seus amigos.
Agustina escreve sobre o Brasil, mulheres e viagens
Agustina Bessa-Luís visitou o Brasil em 1988, em companhia de Eduardo Lourenço e Arnaldo Saraiva. “Agustina confessou ter imediatamente amado o Brasil, perigoso e impulsivo, cuja violência, aliás, não temia, atrevendo-se a sair sozinha para fazer compras em São Paulo. Amou o Brasil, vasto, quente, sensual, de uma beleza incomparável e difícil para os portugueses, ‘demasiado débeis para este sol, esta claridade tropical, este segredo que resiste às maiores contradições’.”
“Uma viagem não deve ser unicamente um recreio de amantes ou um preconceito de burgueses, mas deve conter uma proposta de embaixador e um pensamento que frutifique.”
“As viagens inventaram-se para quem está triste. Se não houvesse pessoas tristes não havia agências de viagens. Que julgam que o infante D. Henrique fez ao criar a Escola de Sagres? Um ponto de partida para se poupar à melancolia.”
“Não vale a pena andar de bloco na mão e lápis afiado se o coração não vê o que lhe pertence em qualquer lugar do mundo.”
“Não julguem que as mulheres vão às compras porque são frívolas. Não, senhor. É para se distraírem da tristeza.” (Agustina Bessa-Luís, por sinal, teve depressão.)
Livro com dedicatória de Agustina Bessa-Luís
Leio a prosa de Agustina Bessa-Luís há algum tempo, sempre encantado com o vigor de suas histórias (diria, com receio de preconceito, que contêm uma linguagem viril que impressiona), e comprei alguns de seus livros quando estive em Lisboa, em 2010, e outros pelo portal Estante Virtual.
Neste mês de março, de calor imbrincado com chuvas, pedi a peça “A Bela Portuguesa” e, quando o livro chegou, na segunda-feira, 11, uma surpresa: a autora autografou o livro para a professora Teresa Telles.
Eis o que Agustina Bessa-Luís escreveu: “Para a prof. Teresa Telles, este diálogo em que a Sibila intervém. Afetuosamente, Agustina Bessa-Luís. S. Paulo 1988”. Como ela esteve no Brasil em 1988, S. Paulo é, claro, São Paulo.
Fico a pensar: por que venderam o livro autografado pela autora? Tenho certeza que a professora Teresa Telles não o faria e, se estiver viva, gostaria de devolver-lhe o exemplar, pelo qual paguei 10 reais, mais frete de 7,05 reais. Uma ninharia. Daria à mestra como presente.