A Revista Bula realizou uma enquete com o objetivo de descobrir quais são, segundo os leitores, os melhores livros de contos brasileiros publicados no século 21. A consulta foi feita a colaboradores, assinantes — a partir da newsletter —, e seguidores da página da revista no Facebook e no Twitter. Foram consideradas apenas as obras publicadas a partir do dia 1º de janeiro de 2001, sendo apenas um livro por autor. Nos casos de autores que tiveram mais de um livro citado, foi considerado aquele que obteve o maior número de indicações na pesquisa. O critério de desempate, quando necessário, foi a nota atribuída aos títulos na rede social de leitura Skoob. Os livros foram divididos em cinco categorias, de acordo com o número de indicações: +120, +80, +70, +50, +40 e +30. As sinopses são adaptadas das utilizadas pelas editoras.
Foram lembrados autores de diferentes regiões do país, em especial Sul e Sudeste. Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul foram os estados com maior número de autores citados, com cinco indicações cada; seguidos de Minas Gerais e Paraná, que tiveram dois autores indicados. O estado de Sergipe teve um autor listado. Entre os escritores cujas obras foram selecionadas, apenas um não está vivo: Antônio Carlos Viana, que morreu em 2016, aos 72 anos. Com relação à idade, o mais velho é o paranaense Dalton Trevisan, que tem 93 anos. Já o mais jovem é Tobias Carvalho, com 22 anos de idade.
Livros que obtiveram mais de 120 indicações
Nas nove narrativas reunidas em “Anjo Noturno”, Sérgio Sant’Anna explora, entre contos, memórias e novelas; temas díspares e entrelaçados, como morte e vida, infância e velhice, paixão carnal e amor fraternal. O conto “Talk show” narra a participação de um escritor em um programa de auditório, numa sucessão de situações embaraçosas que se desenrolam tanto no palco quanto nos bastidores. Já em “Augusta”, o autor relata o encontro entre um professor universitário e uma produtora musical numa festa em Copacabana. A mesma atmosfera lasciva marca outras histórias, como “Um conto límpido e obscuro”, em que o protagonista recebe a visita inesperada de uma amiga artista plástica com quem não tem relações amorosas há cerca de dois anos. Nesse universo de tensão, entre desejo e profunda solidão, o autor percorre suas próprias memórias e anseios.
Livros que obtiveram mais de 80 indicações
Nesta coletânea, Antônio Carlos Viana apresenta 33 contos, ambientados ora em paisagens áridas e abafadas do interior brasileiro, ora na França ou no Marrocos. O denominador comum é uma constante sensação de perda — da infância, da pureza, da alegria — e a descoberta, por vezes brutal, do sexo e do mundo, sintetizada no título do livro, extraído de uma passagem da Bíblia: “Aberto está o inferno e não há véu algum que cubra a perdição”. Na prosa do autor, espelha-se um Brasil miserável, mas exuberante, que parece saltar das páginas do livro para a imaginação do leitor. Antônio Carlos Viana foi integrante da geração de escritores que, nos anos 1970, fizeram da narrativa breve um espaço de experimentação na literatura brasileira. Ganhador por duas vezes do Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes, Viana morreu em 2016, em sua cidade natal, Aracaju, Sergipe.
Livros que obtiveram mais de 70 indicações
Um homem toma um trem para sair da cidade, mas não consegue deixar o perímetro urbano. Outro personagem acorda em seu quarto e percebe que está acompanhado de um crocodilo. Uma casa redesenha a própria arquitetura como se estivesse viva. Nas histórias de “Deixe o Quarto Como Está”, a lógica cotidiana abre espaço para estranhos eventos e relações que configuram um novo mundo. Alguns dos contos, como “Autorretrato”, “Aprendizado” e “Para salvar Beth”, permitem uma leitura realista. Outros adentram sem hesitação o terreno do fantástico: “Hereditário”, “O crocodilo”, “O rosto”, e “O encontro”, fantasias kafkianas narradas com o humor de um cineasta surrealista. Há também relatos que ficam entre o real e a fantasia, como “Exílio”, “Correria” e “Espera”. O livro recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura e menção honrosa no Prêmio Casa de Las Américas, em Cuba.
Nos 13 contos do livro, deparamos com a infância e a adolescência de moradores de favelas — o prazer dos banhos de mar, das brincadeiras de rua, das paqueras e dos baseados —, moduladas pela violência e pela discriminação racial. Geovani Martins narra a vida de garotos para quem às angústias e dificuldades próprias da idade soma-se a violência de crescer no lado menos favorecido da “Cidade partida”, o Rio de Janeiro das primeiras décadas do século 21. “Histórias de muitos Brasis se cruzando, reinventando a língua por meio do encontro. “Tenho facilidade para me adaptar às muitas formas de falar o português brasileiro e como já morei em favelas sob comando de todas as três facções do Rio, e ainda numa dominada pela milícia, acabei tendo contato com as particularidades de cada região.”
Um turista na Espanha acaba se tornando amigo de um casal de brasileiros: a possibilidade de um triângulo amoroso se insinua o tempo inteiro, mas pode muito bem ser algo imaginário, assim como a paixão de um fazendeiro de origem holandesa por uma famosa socialite, que ele conhece através de um quadro. Nesta coletânea, proliferam-se narrativas de amores que não se concretizam, e de desejo sexual que, para além do prazer, traz angústia. Exercendo pleno domínio das formas breves, Miguel Sanches Neto constrói aqui uma série de situações verossímeis em sua sordidez de detalhes envolvendo personagens que compartilham uma profunda e desoladora solidão. O que está em jogo é o caráter ambíguo e opaco da linguagem. É através de tudo o que não se revela que as criaturas a quem o autor deu vida mostram-se tão humanas.
Livros que obtiveram mais de 50 indicações
Em “Sem Vista Para o Mar”, Caroline Rodrigues reúne 22 contos ficcionais. Neste livro, não existe visão dicotômica de mundo: a autora, antes, se preocupa em pincelar suas personagens com qualidades que vão além de um discurso moral, econômico ou social. Por mais que a concretude das realidades apresentadas seja parte inerente da história, não funciona como ponto de partida. Os contos são também permeados de imprevistos, encontros e desencontros. Os textos são curtos, numa prosa que não respeita pontuações e que, em dados momentos, se aproxima da poesia. Ao longo dos contos, a autora apresenta personagens que soam familiares a qualquer leitor. O livro ganhou o Prêmio Jabuti e também foi premiado pela Biblioteca Nacional, transformando Carol Rodrigues em uma das maiores revelações da literatura brasileira contemporânea.
Em seu primeiro livro, Gustavo Pacheco reúne onze histórias inquietantes. O leitor viaja do Bornéu ao Bronx, de Moçambique a Salvador, da Alemanha à Cidade do México, de Pequim a Buenos Aires. Nestas geografias cruzam-se as histórias de Dohong, que ficou doente depois de a mãe morrer de desgosto; do escravo Zakaly, que se deslumbra com o que lhe dão de comer; de Kuek, um índio botocudo; de Julia Pastrana, a mulher mais feia do mundo; de Li Xun, funcionário público às voltas com questões teológicas; do taxidermista Thomas Manning, que não gosta de computadores; e de Moacyr, que odeia Isaías e conversa com Deus. Num estilo eclético, o autor cria um retrato da humanidade. O livro foi o vencedor do Prêmio Clarice Lispector, promovido pela Fundação Biblioteca Nacional.
Em “Pico na Veia”, Dalton Trevisan usa contos curtos e secos, construídos com ironia cortante e humor cáustico, para lançar um olhar objetivo sobre a condição humana, em tudo o que esta tem de oculto e ambíguo. São textos que retratam a realidade do Brasil, onde a miséria, o desemprego e o desespero diante da desesperança provocam suicídios, humilhações, medo, amargura e exploração sexual. A obra é uma coletânea composta de cerca de 200 contos. Alguns mais longos, mas, em sua maioria, o livro é uma sucessão de miniestórias. Nelas, os temas recorrentes de Trevisan reaparecem: os desastres do amor, os infernos particulares, a guerra dos sexos, as cenas da vida cotidiana e a condição humana. Dalton Trevisan, autor de mais de 40 livros, foi eleito por unanimidade o vencedor do Prêmio Camões de 2012, ano em que também recebeu o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra.
Livros que obtiveram mais de 40 indicações
Dizem que literatura não se faz com bons sentimentos. Dessa forma acontece em “Cavala”, livro de estreia de Sergio Tavares. Não que os personagens criados pelo autor sejam maus; porém, tomados por desvios complexos e compulsões sexuais, cometem atos violentos — ao mesmo tempo em que buscam uma espécie de refúgio em amores, lembranças ou dores. Foi a partir de sua vivência na profissão de jornalista, em reportagens e entrevistas, que o autor retirou a inspiração para compor as tramas e personagens das quatro densas narrativas do livro. Escritas em primeira pessoa, as histórias conduzem o leitor por situações onde o real e a loucura se equilibram numa linha tênue. Assim, por exemplo, é o primeiro conto, que empresta o título ao livro, protagonizado por uma jovem modelo, bulímica e em surto psicótico. “Cavala” ganhou o Prêmio Sesc de Literatura, na categoria “Contos”.
Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, “As Coisas” traz uma costura de vivências humanas sob a ótica de um jovem homossexual. O personagem constante dessas histórias trabalha, viaja, estuda, cruza ruas de metrópoles agitadas, passa horas em aplicativos de encontros sexuais. Não há maquiagens para a solidão, nem disfarce para o sexo. Ele sente, ele quer, ele ganha e perde, transformando-se de história em história e construindo um arco narrativo que alicerça todo o livro. “Acredito que andamos em uma trajetória de trazer mais representatividade para as artes, e, nesse processo, falar sobre aceitação foi importante. Mas acho também que dá para virar a página, falar sobre o que vem a partir daí, naturalizar que as relações homossexuais existem, mas estar atento às particularidades que elas trazem.”
Livros que obtiveram mais de 30 indicações
Os contos de “Eu Perguntei pro Velho se Ele Queria Morrer” são, ao mesmo tempo, atraentes e perturbadores. Com jogos de linguagem e imagens marcantes, José Rezende Jr. constrói esse livro a partir de 12 contos de amor, dos mais diferentes tipos. Entre eles, destacam-se o que dá nome ao livro, um embate dramático entre um filho adotivo e seu pai doente; “Vida, morte e assunção de Nossa Senhora”, que narra a história de uma companhia de teatro que viaja em caravana pelo Brasil; e “Um conto de horror”, que apresenta ao leitor o dilema de uma mãe que não reconhece mais o filho como sendo seu. Essa foi a segunda obra escrita pelo jornalista José Rezende Jr., com a qual o autor ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria “Contos”.
Em “Amora”, a autora pretende mostrar que o encontro consigo mesmo, sobretudo quando ocorre fora dos padrões, pode trazer desafios ou tornar impossível seguir sem transformação. É necessário avançar, explorar o desconhecido, desestabilizar as estruturas para chegar, enfim, ao sossego de quem vive com honestidade. Os contos de “Amora” não versam apenas sobre relações homossexuais entre mulheres. Também estão presentes na obra o maravilhamento, o estupor e o medo das descobertas. Natalia Borges Polesso estreou na literatura com “Recortes para Álbum de Fotografia sem Gente”, livro que ganhou o Prêmio Açorianos. Com “Amora”, Natalia venceu o Prêmio Jabuti. Em 2017, foi escolhida pelo Hay Festival da Colômbia como um dos 39 escritores com menos de 40 anos mais promissores da América Latina.
Luiz Ruffato adentra o labirinto das narrativas breves em “A Cidade Dorme”. A coletânea reúne 20 histórias escritas durante 15 anos pelo autor. Juntas, compõem um painel sobre a passagem do tempo, as relações familiares e a memória. A partir de um ponto de vista pouco presente na literatura brasileira, o do trabalhador urbano, Ruffato tece uma reflexão contundente sobre a perda da inocência interiorana e as dificuldades da luta pela sobrevivência nas periferias das grandes metrópoles brasileiras. A meninice nos anos 1960; histórias sobre futebol e a ditadura; questões ligadas à violência urbana; e o universo das drogas se mesclam ao longo do livro. As agruras vividas pela classe trabalhadora são um tema recorrente nas obras de Luiz Ruffato, um dos mais importantes autores brasileiros, ganhador de honrarias como o Prêmio Jabuti, Prêmio Casa de las Américas e Prêmio Internacional Herman Hesse.
Cíntia Moscovich apresenta ao público um volume que reúne contos inéditos escritos ao longo de seis anos. Com originalidade, a autora aborda temas corriqueiros e inevitáveis: o ciúme do filho pela mãe, a adoção de um cachorro abandonado, um jovem casal às voltas com uma reforma na casa. Valendo-se do humor e da tragédia, Moscovich criou contos coesos e divertidos, que mais parecem uma só narrativa. “Desde o início, quis um enxugamento neste livro. Uma coisa menos causa e lógica. Uma escrita mais objetiva, essencial, sem excessos. Queria falar sobre uma classe média, daquela em que nada sobra, mas também nada falta. Ao pegar essa gente mediana, consigo representar toda a sociedade.” Segundo Fabrício Carpinejar, que assina a orelha do volume, “Esse livro é um retrato antológico de Cíntia Moscovich (…), um clássico”.
“Contos de Mentira”, estreia literária de Luisa Geisler, é um livro formado por pequenas histórias densas, que retratam o ser humano sozinho, acompanhado de sua incompletude. Ao todo, a coletânea reúne 17 textos, alguns sobre pequenas mentiras metafóricas, outros sobre pessoas que vivem uma existência totalmente de mentira. Histórias que falam de sentimentos universais. São contos breves, com ares de curtas cinematográficos, cheios de desafios e determinação. Não se tratam de narrativas convencionais, com princípio, meio e fim. Cada história começa no meio ou em um ponto qualquer do seu percurso, sem que nenhum fato marcante nos diga: neste ponto tudo teve início. Cabe ao leitor essa decisão. Avaliado pelos escritores Raimundo Carrero e Marina Colasanti, o livro foi o vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, na categoria “Contos”.