O racismo da época de Monteiro Lobato vai deixar de ser racismo porque sua obra foi modificada?
Bandeiroso, um escritor reescreveu uma das histórias de Monteiro Lobato, para torná-la palatável, quer dizer, politicamente correta. Há quem proponha que seus textos devem ser suavizados. Trata-se de um desrespeito profundo contra a cultura, contra a liberdade de criação e contra o escritor.
Não há ideias e sociedades perfeitas. É certo que se deve buscar uma sociedade mais igualitária — a igualdade absoluta é uma fantasia, porque o mundo é movido pelas desigualdades profundas entre os indivíduos —, mas não se deve mexer nos textos de escritores, ainda que se discorde profundamente deles.
Histórias complexas, difíceis de aceitar, por vezes são registros de uma época, de visões de mundo cristalizadas num período. Mudá-las, para que se adequam aos novos tempos e às ideias aceitas, além de desfigurá-las, é falsificar como se pensavam e se comportavam os homens de ontem (e, em alguns casos, de hoje). O racismo da época de Monteiro Lobato vai deixar de ser racismo porque sua obra foi modificada? Não vai, é claro. As editoras devem deixar os textos como foram escritos. Quem não gostar, por um motivo ou outro, que não os leia.
Intelectuais acadêmicos, alguns deles respeitáveis, quando defendem mudanças na obra de Monteiro Lobato e até vetos a determinados trechos (em “Caçadas de Pedrinho”, por exemplo), não percebem que se comportam como se fossem ditadores e como a liberdade de expressão não fosse uma exigência das sociedades democráticas. O ditador soviético Stálin tinha o hábito de retocar fotografias, para se colocar nos centros dos acontecimentos históricos, e de excluir adversários das fotos e dos livros, como se tais indivíduos não existissem. Querem fazer o mesmo com Monteiro Lobato, “limpando” a história e seus livros? Querem construir uma história e uma literatura perfeitas, de boas ações? Se querem, o que querem mesmo é matar a literatura. Dá para excluir da literatura autores conservadores como Knut Hamsun, Louis-Ferdinand Céline, Pierre Drieu la Rochelle, Ezra Pound, T. S. Eliot, Gustavo Corção só por que não apreciamos suas ideias políticas? Claro que não. Eles escreveram literatura de primeira linha, ainda que, como Céline, sobretudo, fossem politicamente abomináveis (Eliot e Corção, claro, nada tinham de abomináveis, pois seu conservadorismo não se aproxima do delírio de Hamsum, Pound e Céline).
Reescrever obras literárias, para dotá-las de um espírito politicamente correto, é uma atitude stalinista. É um assassinato cultural. Deixem Monteiro Lobato em paz. Ou melhor, deixem as crianças escolherem, porque, rebeldes por natureza, não aceitam totalitarismos de alguns adultos e se divertem — como eu me diverti quando menino — com a prosa divertida, inteligente e livre do escritor. O racismo “de” Monteiro Lobato está sendo “expandido”, não por leitores qualificados (as crianças são), e sim por maus leitores, intelectuais que forçam a literatura a dizer o que não querem dizer, nunca disseram e não estão dizendo.