Da arte de não querer ouvir o que já sabemos

Da arte de não querer ouvir o que já sabemos

Primeiro aconteceu no congestionamento de uma cidade grande, com aquele sujeito pequeno que decidiu fazer uma faxina no interior de seu carro enquanto o trânsito não andava. Indiferente como os ponteiros de um relógio que atropelam a vida em total desaviso, juntou o entulho que ali havia, restos de comida, maços vazios de cigarro, latas de cerveja amassadas, e atirou tudo à rua pela janela, sob meia dúzia de olhares apáticos vindos de um ou outro veículo entre as centenas que ali jaziam por todos os lados.

Livre da sujeira que emporcalhava seu universo exclusivo de seis lugares, bancos de couro, direção hidráulica e câmbio automático, o homenzinho limpou uma mão na outra, aumentou o volume da música e se pôs a praguejar em silêncio contra Deus, o mundo e o trânsito.

Foi então que ali, naquele dar de ombros sem consciência, ele percebeu uma mulher caminhando entre os automóveis parados. Ela era linda, linda. Vinha sabe-se lá de onde e era quase certo que andava justamente na direção dele. Dois segundos depois, não havia dúvidas: era mesmo para ele aquele sorriso de velha amiga de outros tempos.

A mulher se aproximou resoluta, firme, sorrindo a felicidade, e parou bem de frente ao homem que adotara uma forçada expressão agradável. Ela mirou os olhos dele com ternura, respirou fundo e, com a frieza da morte e a determinação de um míssil, lascou-lhe uma bofetada na cara.

Não foi um tapa à toa, nem um soco cego. Foi uma bofetada circense, escandalosa, espetacular. Na cara. Marcando-lhe os cinco dedos na face branca, explodindo em seu rosto como os fogos de artifício no céu do réveillon.

O esbofeteado fechou os olhos durante o instante breve e imperceptível que precede qualquer reação, um pedido de esclarecimento, “por que você me bateu?”, um grito de socorro à polícia, aos escoteiros, à mãe já morta, um revide cego, uma fuga para não apanhar de novo ou uma pausa para o choro infantil e soluçado da criança empurrada na fila da escola. E quando ele abriu os olhos de novo, a mulher já não estava mais ali. Sua agressora desaparecera, rápida como o tapa que o atingira nas ventas.

Banhado de suor e descrença, ele saiu do carro e despencou em perguntas urgentes gritadas a todos os lados, girando ao redor de si mesmo. “Mas quem é essa louca? Quem ela pensa que é? Surgir do nada e agredir um cidadão de bem, pagador de impostos, pai de família? Eu exijo que essa bandida seja presa!”

Sua única resposta foi o som coletivo das dezenas de buzinas se manifestando nervosas contra seu carro parado no tráfego que recomeçava a fluir lentamente. A mulher desapareceu como surgira. Do nada. E reapareceu depois, outras vezes, em outros lugares, para fazer numerosas outras vítimas.

Um velho manipulador, habituado a assediar sua empregada doméstica enquanto a esposa doente dormia, foi surpreendido ao sair do banheiro sem as calças, pronto para voar nas ancas da funcionária que lavava a louça. A mesma mulher misteriosa, linda, linda, brotou das sombras do apartamento escuro e partiu a cara sem vergonha do tarado com uma bofetada que o entrevou na cama. Depois desapareceu como mágica.

Casos como esse passaram a se repetir em todos os lugares. Notícias chegavam de todos os cantos. Uma moça com as mesmas características aparecia, atacava e sumia como um fantasma vingativo.

Até ressurgir em outro endereço e fazer uma nova vítima sem qualquer relação aparente com a presa anterior. Uma policial de trânsito que contava na intimidade de sua casa as notas de cinquenta reais coletadas em mais um dia de subornos recebidos e multas não dadas. Um marido cretino que levantou a costumeira mão para sua esposa submissa, socou-lhe no olho e foi à cozinha pegar outra cerveja. Uma apresentadora de televisão famosa por incentivar os telespectadores a fazer justiça com as próprias mãos, ignorando os efeitos medonhos da superficialidade e do ódio gratuito de suas posições.

Em todos esses episódios, o mesmo desfecho. Uma mulher linda, linda surge do vazio e golpeia a cara de suas vítimas com um sonoro tabefe para logo depois desaparecer em mistério e dúvida.

As histórias ganharam repercussão internacional. Dias, semanas, meses se passaram e os jornais, programas de televisão, os investigadores, os fofoqueiros e, sobretudo, os esbofeteados seguiram fazendo as mesmas conjecturas e perguntas sobre a agressora misteriosa e implacável. Menos uma: “Por que será que nós estamos apanhando?”

André J. Gomes

É professor e publicitário.