Cormac McCarthy está morto. Não deixe a vida passar sem ler Meridiano de Sangue

Cormac McCarthy está morto. Não deixe a vida passar sem ler Meridiano de Sangue

Hoje, o mundo ficou mais pobre. Cormac McCarthy está morto. A posição de maior escritor vivo acaba de ficar vaga. Essa afirmação parece exagero? Então, você precisa ler urgentemente “Meridiano de Sangue”. É uma experiência formativa. Ninguém sai de suas quase 400 páginas a mesma pessoa que entrou. Alguns podem defender que há livros mais influentes, livros mais cultuados ou de carpintaria literária mais complexa, mas certamente nenhuma obra escrita nos últimos 50 anos é mais impactante do que “Meridiano de Sangue”. McCarthy uniu violência, estilo, lirismo, sabedoria e poesia para escrever o Grande Romance Americano, comparável apenas aos clássicos “Moby Dick” e “O Apanhador no Campo de Centeio”. Exagero? Não creia. Essa afirmação pode ser corroborada por 11 fatos incontestáveis.

O enredo de “Meridiano de Sangue” pode ser resumido em poucas linhas. É simples e objetivo. Mas a partir de uma premissa quase telegráfica inúmeros subtemas se desdobram, aprofundando e complexificando o núcleo inicial. O melhor paralelo para compreender esse fenômeno é o Big Bang, o marco zero de nosso universo, que partiu de um ponto único e infinitamente denso, para se espalhar em todas as direções em uma grande explosão. No caso de “Meridiano de Sangue” uma explosão de vísceras e miolos atingidos pelo impacto de uma bala fumegante.

Há livros clássicos que desafiam a paciência do leitor, que se vê obrigado a se perguntar a cada monótona linha, a cada enfadonho parágrafo, por que mesmo tal obra é um clássico que precisa obrigatoriamente ser lido. Muitas vezes sem resposta, o leitor sente-se estúpido. Resta-lhe dois caminhos: ou reconhece suas limitações e abandona a leitura ou continua penosamente a ler, confiando nos críticos e na tradição cultural. Com “Meridiano de Sangue” é diferente. É um clássico com jeito de clássico. A cada página temos a sensação de que estamos lendo algo importante, algo fundamental e épico. Um clássico na acepção da palavra, uma obra imortal. 

Meridiano de Sangue é um Bildungsroman, um romance de formação. Não é por acaso que seu protagonista sem nome começa sendo chamado de “Garoto” e termina sendo chamado de “Homem”. Notem que assim que assume a condição adulta, de “homem”, ele se vê obrigado a matar um garoto, não muito diferente do “Garoto” que ele mesmo foi.

O romance expõe uma nova perspectiva sobre a conquista do Oeste Americano. Sempre aprendemos que foi basicamente um massacre. “Meridiano de Sangue” mostra que de fato constituiu-se em um massacre, mas foi, sobretudo, uma guerra. Os índios não entregaram suas terras sem lutar bravamente. Mataram barbaramente, com requintes de crueldade, colonos, vaqueiros e soldados. Não poupavam idosos, mulheres, crianças ou animais. Estranhamente, esse ponto de vista valoriza a memória dos bravos guerreiros que ocupavam as pradarias do velho oeste. Os índios perderam a guerra, sim, ganharam cassinos como prêmios de consolação, sim; mas encheram de medo os corações dos inimigos brancos, antes de serem obrigados a enterrar seus próprios corações na curva do rio.

Melhor personagem da literatura contemporânea domina “Meridiano de Sangue”: o Juiz Holden. Holden é gigantesco, Holden é carismático, Holden é imberbe, Holden é poliglota, Holden é erudito, Holden é um pesquisador, Holden sabe desenhar, Holden é hilariante, Holden é nudista, Holden não dorme, Holden é elegante, Holden é um cavalheiro, Holden é cruel, Holden mata crianças e cãezinhos, Holden é um orador talentoso, Holden é misterioso, Holden é diabólico, mas, principalmente, Holden é um dançarino. Sua filosofia é: “Somente aquele homem que se consagrou inteiramente ao sangue da guerra, que conheceu o fundo do poço e viu o horror de todos os ângulos e aprendeu enfim o apelo que ele exerce no mais fundo de seu íntimo, só esse homem sabe dançar”.

É um livro fáustico. Pertence a mesma tradição de “Doutor Fausto”, de Thomas Mann, “Mephisto”, de Klaus Mann, e “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, todos herdeiros de Goethe. Em muitos sentidos é uma história de tentação, de sedução. A tradição afirma que o Demônio é o “príncipe desse mundo”. Onde o Demônio, anjo caído exilado do Céu, se sentiria mais a vontade do que no Oeste sem lei? A punição divina que queimou suas asas não pode ter também queimado todos os pelos de seu corpo? O Juiz Holden é o demônio? O “Garoto” é o inocente que tem a alma cobiçada? Talvez, mas não é tão simples. O leitor atento pode perceber que não apenas a alma, mas também o corpo é cobiçado.

Não se convenceu de minha leitura fáustica no tópico anterior? Onde já se viu o Demônio frequentando o Oeste Selvagem? Pois bem, “Meridiano de Sangue” é um livro realista, mas não se furta a flertar com o fantástico. O final do capítulo 15 é emblemático. A tropa descansa em um estábulo escuro. “Então um a um começaram a tirar as roupas de cima, os impermeáveis de pele e sarapes e coletores de lã crua, e um a um propagaram em torno de si um grande crepitar de faíscas e cada homem foi visto usando uma mortalha de fogo muito pálida. Seus braços erguidos puxando as roupas eram luminosos e cada uma daquelas almas obscuras estava envolta em formas audíveis de luz como se sempre houvesse sido assim. A égua no canto oposto do estábulo bufou e recuou com a luminosidade em seres tão mergulhados nas trevas e o cavalinho virou e escondeu o rosto de veias do flanco da mãe.”

Meridiano de Sangue, embora seja frequentemente acusado de ser reacionário, apresenta a melhor cena antirracista da história da literatura. Um comerciante se recusa a atender o pistoleiro negro Jackson. O que Jackson faz? Entrega para o porco racista uma pistola e o desafia para um duelo. O resultado faz o leitor vibrar. 

Há bons romances que são melhores nas partes do que no todo. São fortes pelo conjunto. “Meridiano de Sangue” é uma coleção de cenas espetaculares que formam um conjunto genial. Destaco a primeira aparição do Juiz Holden, todo o capítulo 12, a cena das ruinas dos Anasazi e a sequência final. Apenas para se ter uma ideia, transcrevo a seguinte cena: “Quando se aproximaram da cantina um dos homens ali dentro surgiu no vão da porta como um fantasma ensanguentado. Havia sido escalpelado e o sangue escorria por toda parte entrando em seus olhos e ele pressionava um imenso buraco em seu peito onde uma espuma rósea borbulhava ao inspirar e expirar. Um dos moradores pousou a mão em seu ombro. A dónde vas? Disse. A casa, disse o homem”.

É possível fazer uma adaptação cinematográfica de “Meridiano de Sangue”? Suavizá-lo não é uma opção. Ser apenas violentamente explícito é vulgarizar sua essência. O público aguentaria assistir escalpelamentos em close-up? Claro que Quentin Tarantino mostrou isso em “Bastardos Inglórios”, mas estava protegido por certo tom de ironia. Seu escalpelamento não é muito diferente de Pernalonga ser atropelado por um rolo compressor. No filme “Meridiano de Sangue” não poder haver espaço para essas concessões. Quem poderia dirigir essa obra? O diretor John Hillcoat fez um trabalho competente com a adaptação de “A Estrada” (2010), mas não resultou em um grande filme. Por outro lado, os Irmãos Coen acertaram em cheio com “Onde os Fracos não Tem Vez” (2008), ganhando o Oscar de Melhor Filme. Provaram que sabem fazer faroeste refilmando um “Bravura Indômita” (2011) melhor do que o original com John Wayne e o violento “A Balada de Buster Scruggs” (2018). Certamente, são a melhor opção. Mas ouso apostar em outro nome: Mel “Mad Max” Gibson. O tom épico de “Coração Valente” (1995), “A Paixão de Cristo” (2004) e “Apocalypto” (2006), acrescido da integridade máscula de “Até o Último Homem” (2016) e a sutileza paternal de “O Homem sem Face” (1993) seriam perfeitos. Gibson não tem medo de chocar a plateia, mas ao mesmo tempo sabe que impactar graficamente é pobre. Seus banhos de sangue estão repletos de entrelinhas. Uma cena violenta não pode ser apenas efeitos visuais realistas, deve estar imbuída de intenções críticas quanto a natureza humana. Se a pergunta é: até onde um homem é capaz de ir em uma situação limite? Gibson sabe a resposta e é capaz de te mostrar com toda crueza necessária para que você entenda. Se você vai ter coragem de olhar é outra história.

Por fim, outros livros possuem leitores ocasionais, admiradores, cultuadores ou membros de fãs clubes juvenis. “Meridiano de Sangue” cria outro tipo de vínculo. Quem o lê torna-se membro de uma confraria, de uma irmandade. Seus leitores são como os fuzileiros navais americanos, tornam-se irmãos, literalmente, de sangue. “Semper Fidelis”, sempre fiéis.

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.