Não caberão parabéns no mês da mulher até que seja reparada toda a desigualdade entre homens e mulheres

Não caberão parabéns no mês da mulher até que seja reparada toda a desigualdade entre homens e mulheres

Estamos no final da segunda década do século 21, onde habitava o sonho de um futuro mais justo, mas o passado opressor ainda é presente na vida de milhões de mulheres. Mais de um século de luta organizada não foi suficiente para mudar a mentalidade de parte da sociedade, dependente do demérito feminino. A maioria das brasileiras ainda tem piores condições de desenvolvimento desde o nascimento e vive espremida por mais e mais exigências de performance. Das piadas aos assassinatos, passamos por abusos, assédios e estupros, e a banalização desses comportamentos não mente: o Brasil ainda é severamente machista e violento conosco. Infelizmente!

Não precisamos estar de burca ou ser apedrejadas por desobediência para sentir a barbárie em nossas peles. Por aqui, ela começa com sutileza na infância, quando se presenteia as meninas com panelinhas e vassouras e os meninos com pipas e aviões — brinquedos que denunciam as possibilidades de cada papel. Muitas vezes, as meninas são condenadas a ser exclusivamente cuidadoras. Da casa, dos homens da família, dos mais fracos e de todas as necessidades do entorno. Exceto delas mesmas. Por outro lado, aos meninos é oferecida a chance de viver seus voos, naquele céu lúdico e no seu real, empinando sonhos. Nasce desse descuido uma possível educação sexual castradora para elas x caçadora para eles. Infligem obrigações às fêmeas humanas. E restringem o universo de descoberta e prazer ao mundo masculino, sob o pretexto do bem-estar geral. Eu me pergunto ao bem-estar de quem, já que estar imersos e adormecidos nessas noções à la Crime e Castigo adoece todo mundo.  

Na vida adulta, seguem o massacre. Magras ou gordas. Inteligentes ou alienadas. Resolvidas ou problemáticas. Empresárias ou mães. No casamento, por favor, todo cuidado é pouco! Podem trocar você por alguém mais recatada e do lar, hein? Rótulos de um 8 ou 80 desrespeitoso, que a ninguém protegem. E quando a gente acha que o pior dos cenários é ocuparmos o ranking do quinto lugar em feminicídios no mundo, apesar de todos os avanços do feminismo, uma Ministra da Mulher usa de seu cargo para defender costumes que reduzem pessoas a rosa e azul e potencializam o risco do rico diverso.  Atitudes assim prestam o desserviço de seguir repetindo, a essa altura do campeonato, que a mulher nasceu para ser apenas a dona da casa grande, enquanto tentam garantir que residamos eternamente na senzala. Apreciando maus tratos. Sendo escravas de ideias alheias. Encenando corretamente papéis que não necessariamente desejamos. Para a senhora ministra e a todos que tentem se adequar a um manual de existência, aqui vai o meu recado: sejam o que quiserem. Apenas não sigam a obrigação de nenhum modelo. Isso é aviltante. Amordaçador. Pessoalmente, escolho seguir em luta, apesar dos riscos.

Daí penso em quantas Marielles perderam suas vidas por ousarem ser mulheres, pretas, pobres, lésbicas e, o mais ameaçador, corajosas. Sinto medo, passeio por uma desesperança que quase me rouba para sempre. Mas é na revolta com tais descabidas noções que percebo que resistir ainda é o melhor caminho. Aprumo meu corpo e sigo. Tenho avós, mãe, tias, primas, amigas. Uma filha pequena. Sinto irmandade com as manas e monas. E, por tudo isso, não admito um futuro tão limitador para elas. Nem para mim.

Não me ofende que estabeleçam um Dia Internacional da Mulher. Apenas entendo que o calendário não é um aniversário coletivo feminino, pois a construção histórica dessa data refere-se aos protestos pelas más condições enfrentadas desde sempre pelas mulheres. E serve de lembrança das conquistas políticas e sociais como combustível para seguir avançando em busca de direitos iguais aos dos homens. Tomo emprestadas as palavras da socióloga Eva Blay, uma das pioneiras nos estudos sobre os direitos das mulheres no País, para encerrar no texto uma discussão que deve ser permanente: “Esse dia tem uma importância histórica porque levantou um problema que não foi resolvido até hoje. A desigualdade de gênero permanece. As condições ainda são piores para as mulheres. Já faz mais de cem anos que isso foi levantado, e é bom a gente continuar reclamando de modo organizado e combativo, porque os problemas persistem. Historicamente, isso é fundamental”.

Por isso, amigos, mesmo que seja boa a intenção, não me venham com bombons, flores ou homenagens vazias. Não caberão parabéns no dia 8 de março. Até que seja reparada toda a desigualdade entre homens e mulheres.