Ponto de encontro dos corações desencontrados

Ponto de encontro dos corações desencontrados

Despertos que vagam no seio da noite, quatro ou cinco ou seis bilhões ou mais, é tempo de estarmos juntos. Notívagos, estressados que não adormecem, sensíveis que despertam ao menor barulho no interior de suas cabeças, almas boas oprimidas pela marcha barulhenta do ódio gratuito e diário, sob as botas pesadas da inveja e o calcanhar rachado da burrice, já passa da hora de nos unirmos.

Fosse o mundo mais justo, nas altas horas da noite nos seria garantido por decreto divino, irrevogável como a lei da gravidade, o sono gratuito, natural, puro e simples, sem o auxílio de remédios, terapias, simpatias e afins. E nas altas horas nada nos restaria senão dormir na quietude morna, levados pela espuma mansa dos sonhos doces.

Mas não. A nós, insones, cabe a tarefa de velar o sono do mundo. Enquanto ele dorme, nós o vigiamos diligentes, ora rolando na cama como bolinhos de arroz na gordura quente, ora vagando pela casa acesos feito o fogo das convicções definitivas.

Assim, sendo o sono nossa causa perdida, ganhemos então a noite. É tempo de deixarmos nossas casas acesas, as televisões ligadas, pisando leve para não acordar o vizinho de baixo, e nos encontrarmos em uma praça qualquer do mundo.

Lá, sobre a grama dos grilos e formigas e dos cães sem dono, abriremos em silêncio nossas toalhas xadrez e dividiremos nossa comida, nossa bebida, nossas dores e nossas delícias. Aos poucos, nossa gente irá chegando com um sorriso resignado, manso e digno. Uns trarão café, outros, cerveja, pão com manteiga, revista em quadrinhos, balas de amendoim, livros, fotografias, cigarros e histórias, todas as suas histórias.

Juntos, espalhados no gramado como honestos anjos caídos, olharemos o céu, falaremos do vento, do clima, do preço da carne, diremos nossos casos uns aos outros, brindaremos à noite e seus habitantes, à vida e seus encontros, dançaremos cantando baixinho as canções que ressoam em nossas lembranças, contaremos nossas riquezas, lamentaremos nossas virtudes e riremos orgulhosos de nossas desgraças, invejando juntos, de inveja boa, nossos irmãos que enquanto isso dormem tranquilos, sonhando que amanhã será melhor.

E se um assaltante ou um ladrão nos abordar indefesos na calada perigosa da noite, em sua fúria de subtração, o mais corajoso de nós dirigirá a ele um olhar amigo e lhe fará um convite: vem, irmão! Leva o que puder sem luta, afinal você também está acordado a esta hora! Se quiser, senta conosco, ou fica aí mesmo em pé, dança com os de nós que aí estão bailando, bebe com os nossos que cá estão bebendo. Esteja em casa, ó bom homem que é um de nós. A falta de sono nos castiga e abriga e irmana como quase nada que há no mundo. Estejamos, portanto, juntos, que é o que nos sobra.

Então, libertos de todo o mal, nos despediremos sorrindo as estrelas e voltaremos a nossas camas, bêbados de sono e festa, para dormir uma hora ou duas antes que o sol reapareça detrás das árvores e dos prédios. E quando enfim acordarmos para o dia, nossos olhos embaçados sonharão com a noite, tomados para sempre pela alegria insuperável do encontro.

André J. Gomes

É professor e publicitário.