O amar varia. Sei que já ouvi esse verso nalguma canção. Sofro de desvios. Eu gosto de caminhar pelo centro da cidade apinhada de prédios avariados a pedir demãos de tinta. Sempre pinta um aloprado aprontando uma das suas no vai-e-vem de gente. Ele não paga sapo, mas, também não dá esmolas. É um doido genuíno. Não sei como explicar. Parece um desatino. O fato é que eu me sinto bem andando pelas calçadas esburacadas, com o sol a pino. Não tenho a mesma disposição para fazer essa jornada à noite. Mata-se muito quando o sol se põe. Faço planos de morrer velhinho, nem que seja com um tiro na têmpora. Quem tempera o centro histórico e descaído das grandes cidades são as pessoas. Eu sei que a urbanização desenfreada é um saco, mas, cidades vazias não param em pé. Sinto-me inspirado, tenho boas ideias quando caminho. E não guardo afeto pelas pedras. Eu gosto mesmo é do leve da vida. Por isso, eu vagueio pelo centro degradado da cidade em que nasci, repetindo as trilhas da minha infância. Gastava-se muita sola de sapato atrás de um sonho. Pode ser que isso soe meio deprimente, contudo, eu preciso reconhecer que, de certa forma, eu me sinta acolhido pelos ares do velho centro, a despeito da notória negligência gerencial da prefeitura. Alguém que se declara um perdido me pede informações para chegar até um destino. Justo eu. Ainda por cima, era um golpe. Bateram-me a carteira. Justo a minha, abarrotada com cartões de visita, uma camisinha e um trevo de quatro folhas que mamãe me obrigou a guardar. Lembro dela me pagando pizzas de mozarela-com-tomate na lanchonete das Lojas Americanas. Sigo o fluxo. Há muita gente e muito lixo. Luxo zero. A mentalidade do prefeito é tão arcaica quanto os prédios tombados pelos técnicos do Patrimônio Histórico. Uma dona histérica grita que lhe roubaram os sonhos de dentro da bolsa. Não tem policiais em ronda nas imediações. A vida pulsa, apesar da lei vigente. Vejo gente fazendo fila numa casa lotérica. Todos querem ser milionários, apesar da grana não significar grande coisa no final das contas. Morre-se pelas beiradas. Piso em titica e não foi um bicho quem fez. Legião de segregados ocupam becos e marquises. Tem criaturas de todo jeito. Michês com cantadas clichês. O temível homem-do-saco aterrorizando crianças por causa do seu lastimável estado de desumanidade. Cães fodendo na calçada. Um pastor alemão pregando o evangelho numa parada de ônibus. Todos querendo chegar logo em casa e quase ninguém embarcando naquele falatório. A que ponto chegamos: declama-se poesia em troca de moedas numa esquina movimentada. O calor deixa o ar parado, mesmo assim, os meus neurônios malham. Degusto a melhor esfirra do planeta num cubículo impensável. O centro da cidade, quem diria, esconde deliciosos segredos. Come-se bem. Trepa-se em pé quando escurece, apesar do excesso de sódio, de treponemas e da completa irrelevância dos alvarás sanitários. Operários ovacionam qualquer criatura do sexo feminino que pese mais de 30 quilos. Há calos nas mãos dos que operam punhetas. Tem muita lei no país para pouca gente honesta. Uma pedinte requisita trocados balançando uma receita na mão. Esqueça, minha senhora, a vida não tem mais remédio. Alguém aparece com um naco de alcatra-com-mercúrio-cromo amarrado na canela, em busca da misericórdia humana expressa em moeda corrente. Tenho certos conceitos aprisionados dentro da cabeça e isso é péssimo. Momentaneamente, eu sinto asco da espécie humana. Um andarilho para com câimbras. Um velhote que compra ouro e paga à vista cochila. Sonhará com fortunas ou sua afortunada juventude de volta? Uma moça de beleza impressionante abre passagem na multidão deixando rastros de Palmolive no ar. A vida é um filme noir: preto no branco, melodrama. Os homens gorjeiam. As mulheres carregam sacolas. As crianças pedem churros. Há uma leva de corações decadentes pulsando no centro sujo das grandes cidades. Isso explica o fascinante teor de melancolia que me invade. Agora é guerra. Viceja contentamento e uma flagrante pobreza de espírito nessa história toda.