Cuidado com o Cidadão de Bem: ele pode te dar um tiro

Cuidado com o Cidadão de Bem: ele pode te dar um tiro

Todo mundo adora uma ilusão, principalmente quando as coisas vão mal. É um mecanismo de defesa do nosso cérebro, segundo a Psicologia. Então comece a desconfiar: pode não ter base na realidade. Vem a ser apenas uma compensação imaginária para certas ausências que nos causam medos, aflições, angústias. Em se tratando de sociedade, uma das ausências mais lamentáveis que existem no Brasil atual — frequentemente reclamada com lágrimas, diga-se – é a ausência de segurança pública.

Significa, em tese, que ao colocar o pé na rua você correrá o risco bastante plausível de ser abordado por um marginal. A palavra já diz tudo: existe a concepção, também imaginária, de que a pessoa violenta é apenas a que é excluída e vive à margem. A violência é um estigma de certos grupos sociais e não de outros.

O equívoco simplista deste raciocínio está em fazer acreditar que 100% dos cidadãos bem relacionados socialmente, com grana no bolso, são confiáveis. Nós, os limpinhos, tendemos a nos identicar com o lado resolvido da situação e não achamos legal macular quem se parece com a gente. Reagimos apenas para nos defender do sujeito que, vindo da margem para o centro, infiltra-se em nosso meio com intenções malignas. E temos a fantasia criada, do mocinho contra o bandido. Do bom contra o mau.

Fica parecendo que é possível separar o homem de si mesmo, em função da distribuição geográfica e dos ativos econômicos de que dispõe. Na nossa cabeça (nela somente), o bem viceja entre os afortunados, o mal entre os excluídos. Não existe o caso a caso. Criou-se desde modo a última — e perigosa — ilusão que tem feito eco em nossas almas aflitas: a chamada Pessoa de Bem. Assim mesmo, com iniciais maiúsculas, pois trata-se de um mito, da mesmíssima categoria que o Saci Pererê ou o Papai Noel. Quer dizer, ele não existe. Ninguém vive permanentemente sob a luz, sem intervalos de sombras.

Contra nossas falsas ilusões, a realidade tem sido chocante. Quem acompanha os noticiários não pode negar a quantidade de pessoas enquadráveis no perfil “homem de bem” praticando violências, crimes e agressões contra o próximo. Maridos de classe média socando as esposas, garotões fitness batendo nas namoradas ou apelando — quando não dando tiros — no trânsito, por causa de nada. Tudo isso para nos provar que o mal é inato em todas as pessoas e não convém estimular um faroeste.

“Em que mundo você vive?” é uma pergunta apropriada na quadra ruim que atravessamos. O leitor deste texto acredita mesmo que a tal Pessoa de Bem vai respeitar a lei e não sairá de casa armado quando lhe derem uma oportunidade, se é incapaz de conter impulsos tão agressivos quanto os relacionados aqui? Paremos de ser inocentes!

Um reparo: a verdade é que nem de longe a Pessoa de Bem se compara a Papai Noel ou ao Saci Pererê. Nunca vimos o velhinho e o perneta fazerem mal a ninguém — ao passo que não se deve confiar um milímetro em pessoas ignorantes. A má notícia é que o mundo está infestado delas, e não andam com uma estrela na testa. Portanto, menos credulidade com os sorrisos estampados nos perfis.

J.C. Guimarães

Crítico literário.