Viver é sobreviver às tragédias e ao pior de nós mesmos

Viver é sobreviver às tragédias e ao pior de nós mesmos

— Tia, eu vou morrer?

Minha saliva desceu rasgando a garganta. Eu não queria ser aquela “tia” vestida com um jaleco branco e estetoscópio pendurado em volta do pescoço. A enfermeira tinha as luvas manchadas de sangue e os olhos cheios de lágrimas. O menino de sete anos respirava com dificuldade. Por que a vida é tão imprevisível e injusta?

Minhas mãos fizeram os procedimentos técnicos para estancar a hemorragia do garoto. Meu cérebro pensava automaticamente nos protocolos de atendimento ao politraumatizado. A equipe do postinho de saúde trabalhava em conjunto, à espera da ambulância que transportaria aquela pequena vítima de bala perdida para o hospital público. Tinha ocorrido tiroteio na favela: traficantes contra milicianos. Algum acordo que teria sido desfeito, eu leria nos jornais no dia seguinte.

E em todos os dias seguintes eu venho lendo sobre outras notícias, outras desgraças. A gente pensa que já viveu uma situação ruim, então chega outra pior. Nem sempre é diretamente conosco, mas nos afeta mesmo assim. Recentemente, assistimos ao espetáculo da morte em carne viva: ela veio com a lama, a água e o fogo. A certeza da morte nos força a sobreviver às tragédias. E nossa pior tragédia é viver sem esperança.

Queremos enxergar no escuro, mas roubam-nos a fé. Deixaram-nos à beira de nossa coragem: mais um passo, caímos no abismo da incompreensão. Estamos cansados de sofrer; choramos em silêncio, abraçados, sozinhos. Minha plenitude caminha vazia à procura da sua, mas esvaziaram-nos de nós mesmos.

Queremos continuar sonhando, porém, a realidade nos puxa para a existência das coisas como elas são. Vozes em nossas cabeças são coaxar de sapos querendo nos confundir. O que temos feito por nós mesmos? Não nos machuquem, por favor. Não tenham medo. Temos medo.

Vivemos a incerteza dos sentimentos. Hoje, queremos. Amanhã, não gostamos mais. A paixão sabe ter gosto amargo. Somos aqueles que choram mesmo sem saber por quê. Mas, apesar da incongruência, de qualquer indiferença ou melancolia, ainda acreditamos no amor. Tem que haver amor. No final, amar é o que importa. O resto é poeira no vento.

Deixemos, pois, o rosto receber a brisa da noite, aquela que vem tentando secar o choro e arrefecer as feridas. Aquela brisa que traz as lembranças das almas queimadas, afogadas e perdidas. O vento que levanta nossos cabelos e quase nos faz sentir mais leves — porque a brisa não leva toda dor embora.

— Não, meu bem. Você não vai morrer.

Não deu tempo. Não tinha ambulância disponível naquela noite. No dia seguinte, eu leria nos jornais: havia sido descoberta a fraude das ambulâncias.

Rebeca Bedone

é médica.