E de tanto sermos diferentes, no fim somos todos iguais

E de tanto sermos diferentes, no fim somos todos iguais

Carlos é um pai de família responsável. Não deixa sua mulher trabalhar porque acha o mundo corporativo machista. Ama a Deus sobre todas as coisas, exceto seu time do coração. Transmitiu a seus dois filhos homens o amor incondicional pelo clube. Ensinou a eles que é preciso amar a camisa na vitória e na derrota, que tão importante quanto ganhar é ver o adversário odioso perder e que na hora do jogo é imperioso ignorar o resto do mundo, inclusive a própria mãe pedindo atenção. O perfil de Carlos no Facebook tem 902 amigos, todos torcedores do mesmo time.

Dora é uma mulher vivida. Mãe solteira de três meninas adolescentes, tem na alma tantas cicatrizes quanto as folhas de seus inúmeros carnês a pagar. Labuta sete dias em quatro empregos, vende cinco marcas de cosméticos populares para complementar a renda, aposta na loteria, joga no bicho, faz promessa. E educa bravamente suas filhas sem nunca, nunca precisar de um tostão de homem nenhum. Sua conta no Facebook tem 462 amigos, mas ela só usa a rede mesmo para saber o que suas meninas andam fazendo por aí e, claro, para compartilhar as indiretas de suas amigas aos ex-maridos e namorados fajutos.

Lia é uma moça cheia de sonhos. Entrou na casa dos 30 mas nunca saiu da casa dos pais. Espera o príncipe encantado desde a escola primária, tempo em que sofria bullying mas não sabia que isso tinha esse nome. Os colegas a chamavam de “quatro olhos” por conta de seus óculos fundo de garrafa. Ela voltava para casa depois da escola, tirava os óculos e chorava escondida. Hoje, mulher feita, ela usa lentes de contato e ajuda o pessoal do trabalho a fazer piada dos gordinhos, dos efeminados e das loiras. Por trás de suas lentes, mira em novas vítimas o mesmo velho bullying colegial, mas não sabe que tem esse nome. Seu facebook tem 1.226 amigos, ela cutuca quase todos eles mas ainda não conseguiu namorar ninguém.

Léia é uma senhora de princípios. Viúva, caminha para os 80 anos com saudade do marido militar e do tempo em que era jovem. Acha mesmo que o governo deve incendiar as favelas, acredita que a solução para a violência é o esquadrão da morte e que o Brasil só não evolui porque “o brasileiro”, esse ser estranho e monstruoso com quem ela nada tem a ver, habitante de um mundo ao qual ela não pertence, é um grandioso vagabundo. Nas redes sociais, Dona Léia condena a corrupção, o beijo gay da novela e a má distribuição de renda. Mas em sua casa esconde as frutas e as bolachas no quarto, no fundo de seu guarda-roupa, porque acha que sua empregada doméstica andou comendo uma bananinha durante o serviço. Seu perfil no Facebook tem 62 amigos. São seus filhos e netos e bisnetos, suas noras e seus genros, suas primas esquecidas, uma irmã morta que ela não sabe como excluir da lista e meia dúzia de colegas da aula de hidroginástica, que ela largou porque tinha certeza de que a velhinha a seu lado urinava na piscina inteira.

Paulo é um adolescente descobrindo a vida e o valor da amizade. Na companhia de seus amigos, deixou de ser um menino inseguro e cabisbaixo, coisa que tem enchido sua mãe de orgulho. Sai em grupo à noite com a turma e nunca mais levou um desaforo para casa. Ele conta cheio de emoção no colégio sobre o dia em que socou a cara de outro menino até derrubá-lo e pisar na cara dele contra a calçada. E está pensando se conta a seu pai que saiu com os outros meninos de carro à noite para atirar ovos nas prostitutas. O Facebook de Paulo tem 1.994 amigos, e ele acaba de confirmar presença em um protesto contra a violência.

Esses cinco desconhecidos ainda não sabem, mas estão prestes a se encontrar. Eles vão se cruzar no espaço para comentários de um colunista conservador e superficial, no portal de uma revista de grande circulação, que irá dizer um apanhado de bobagens reacionárias, obviedades e sandices preconceituosas com ar de autoridade.

Juntos, os cinco vão aplaudir e comentar ofensas, insultos e incorreções, avançando na carniça como urubus afoitos, e compartilhar tudo em seu Facebook.

Carlos, que não conhece Dora, que não sabe quem é Lia, que ignora Léia, que desconhece Paulo, que ama toda a quadrilha.

André J. Gomes

É professor e publicitário.