No país das gambiarras e da falta de planejamento, a obediência às normas parece algo cada vez mais utópico — mas só isso pode nos salvar de nós mesmos
O mundo do futebol amanheceu na sexta-feira, 8, com uma notícia desoladora: dez garotos das categorias de base haviam morrido em um incêndio durante a madrugada nas instalações do Ninho do Urubu, como é conhecido o centro de treinamento do clube na Vargem Grande, zona oeste carioca.
Em menos de dois dias, duas tragédias no Rio. Na noite de quarta-feira, uma tempestade — que mostrou bem como podem ser de agora em diante os eventos extremos do clima — deixou pelo menos meia dúzia de mortos em deslizamentos, soterramentos e quedas de estruturas na capital carioca.
Em menos de duas semanas, três tragédias no Brasil. Desde o meio-dia de 25 de janeiro, Brumadinho está na lama e assim estará ainda por muito tempo, com muitos de suas três centenas de mortos tendo os rejeitos de mineração que os mataram como seu túmulo definitivo. Essa terceira seria muito menos tragédia e muito mais um grave crime por negligência, como aos poucos tem sido revelado por documentos e depoimentos que vão surgindo.
A cada tragédia, há uma invariável, obrigatória e natural caça aos culpados. Como foi isso? Quem deixou acontecer? Onde estão os responsáveis? Ninguém poderia ter evitado?
A resposta dolorosa: do naufrágio do Titanic ao fogo do Ninho do Urubu, passando pelas mortes por desnutrição na África e o acidente com o césio 137, a maioria das tragédias poderia não ter ocorrido. Terremotos, explosões vulcânicas e tsunamis são exceções, que comprovam a força da natureza e a fragilidade do homem.
Se há a concordância de que poderiam ser evitadas em grande parte, de alguma forma, há sempre algum grau de negligência, maior ou menor, que as favoreça. E aqui se chega ao ponto-chave deste texto: três tragédias de tamanha proporção e visibilidade num prazo de 14 dias, no mesmo país, não podem ser só fruto da árvore do acaso.
Essas tragédias vêm de outra cultura, secularmente cultivada aqui por estas paragens: pesa sobre cada dano, cada morte, o gérmen do jeitinho brasileiro.
A capacidade de um povo aceitar tão passivamente as improvisações e o desrespeito a leis, contratos e normas só pode ser entendida a partir do momento em que se crê, também, que essa burla do sistema às vezes é causa de redenção. Deve vir daí a crença no poder mágico dos mitos, sejam eles da política ou do esporte. Seres extraordinários que driblariam o destino para inventar um caminho e superar as barreiras. Afinal, se Garrincha deu certo, por que também não seria um dia grande esse Brasil, ainda que torto?
De negligências e gambiarras
O Brasil poderia se reinventar após a lama de 2015 matar o Rio Doce e com ele tanta gente, tanta vida, tanta história. Mariana falou, Mariana avisou: eram mais de 600 barragens de rejeitos de mineração e apenas 12 pessoas para fiscalizá-las. A comoção foi embora e levou com ela a vontade política de enfrentar os interesses e mudar o quadro.
Por seu histórico de construção e pela obsolescência diante das novas tecnologias, muitas barragens corriam o risco de repetir Mariana. Até que aconteceu. Como chamar isso de tragédia, remetendo o ocorrido a algo como se fosse uma fatalidade? Não há fatalidade alguma em Brumadinho, pelo contrário: houve uma “””tragédia””” (assim com múltiplas aspas) mais que anunciada.
Mais do que isso, quando se descobre que o sistema de alerta de emergência não pôde ser acionado, o nível chega a outro grau: negligência elevada ao quadrado. Uma empresa que vale bilhões não consegue fazer funcionar uma sirene? Que dividendo merece o acionista de uma mineradora que falha nisso?
De Mariana a Brumadinho, as investigações, CPIs, inquéritos e sentenças, bem como tudo o mais que foi ou poderia ter sido feito, foi sendo levado com a tradicional barriga brasileira. Multas estipuladas e nunca pagas; acusados que nunca foram presos; indenizações que foram levadas nas coxas. E o que dizer dos projetos para recuperação do ecossistema do Rio Doce? A quantas anda tudo isso? Respostas seguem a sina da protelação.
O justo título de Cidade Maravilhosa dado ao Rio de Janeiro pelo magnífico conjunto de belezas naturais se opõe diametralmente à incapacidade humana e política de fazer funcionar seu complexo metropolitano. Se uma chuva de verão instala o caos, o que ocorreria se houvesse uma tempestade de maiores dimensões? Aconteceu, e o Rio virou uma Veneza caótica.
Foi como gambiarra que também ali no Rio, no Ninho do Urubu, transformaram contêineres em alojamento para atletas e os colocaram onde estava previsto apenas um estacionamento. Não havia permissão da prefeitura para aquela instalação. Mas o que poderia acontecer de mais? O que poderia aconteceu.
Um porém, aqui: crucificar a diretoria do Flamengo pelo ocorrido é lícito apenas se aceitar que, mesmo se fosse você a estar na cadeira de presidente do clube, dificilmente o fato deixaria de ocorrer. Afinal, no imaginário coletivo nacional, alvarás e licenças (ambientais, sanitárias, imobiliárias, de funcionamento etc.) são apenas maquinário da indústria da multa, não?
É preciso dizer algo que incrivelmente, por nosso histórico, parece não ser aplicável na prática. É preciso, para que este País um dia dê certo, ser radical na obediência de uma regra de ouro elementar: fazer a coisa certa. Laudos precisam ser respeitados; encostas devem ser evacuadas; licenças precisam ser obtidas.
Tudo isso faz parte de um conjunto de códigos escritos, sobre o qual em outros países não pesa uma névoa utópica. Esse conjunto de códigos chama-se lei. Do dono de carvoaria nos confins do Tocantins ao presidente do STF, todos precisam se submeter a essa palavrinha de três letras para que um dia sejamos felizes.
Garrincha foi craque não porque tinha as pernas tortas. Garrincha foi o craque que foi apesar das pernas tortas. Não é fazendo o torto que se chega ao certo. Não, não é.
Elder Dias é editor-chefe do Portal Estádio das Coisas.
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