Quando o saudoso (e brilhante) professor Jordino Marques me propôs como tema de mestrado ‘ética em Heidegger’, eu ainda não sabia que teria de tirar leite de pedra. Não só Heidegger nunca escreveu um “tratado de ética”, como, pra piorar, era acusado de ter sua obra contaminada pelo nazismo. Isso mesmo, ele não era (é) acusado de ter sido nazista, já que isso era um fato, ele FOI nazista. Essa não era, pois, a questão. O que não significa dizer que ele ativamente contribuiu com as atrocidades. Significa dizer que acreditou no projeto de reconstrução da Alemanha proposto pelo Partido Nacional Socialista durante algum tempo. Significa que foi reitor da Universidade de Freiburg antes da guerra começar, cargo que não ocupou por muito tempo. Não significa, porém, que foi ele quem demitiu Husserl, seu mestre de ascendência judia. Quem fez isso foi o reitor que o antecedeu.
Há nazismo na obra de Heidegger? Não. Nem, propriamente, uma ética. O chamado primeiro Heidegger, o Heidegger de ‘Ser e Tempo’, de onde a maioria de seus “intérpretes” arranca uma ética fornece, inclusive, farto material em contrário. Por exemplo, o conceito de ‘Das Man’, o impessoal. O ser, como ser-com, se empobrece quando dissolvido no impessoal. “Todo mundo é o outro e ninguém é ele mesmo”. Uma vida inautêntica. Há duas maravilhosas ilustrações dessa tese, os filmes, “A Onda”, dirigido por Dennis Gansel, e “Zelig”, do judeu ateu Woody Allen (momento propaganda: discuti esses filmes em minha coluna de cinema na revista “Filosofia Ciência & Vida” e os inclui em meu livro “Cinema & Filosofia”, Kindle Edition).
Mas ressuscitaram o assunto. Por quê? Porque serão lançados em março, na Alemanha, os “Cadernos Negros”, contendo, aparentemente, algum material para soprar a brasa da suspeita que nunca se apaga. Os franceses, claro, estão dando muito mais bola pra isso do que quaisquer outros. A ponto de competir com a boçalidade da quenelle de Dieudonné e com o infundado desespero dos pais quanto à “teoria de gênero” supostamente ensinada nas escolas francesas.
Me pergunto por que não implicam com o “anti-cristianismo” descarado de Nietzsche, que não precisa de nenhum caderno negro, basta ler qualquer coisa sua (“Cristianismo, álcool, os dois grandes meios de corrupção… Na verdade não deveria haver hesitação de escolha ante o islamismo e o cristianismo, tanto quanto entre um árabe e um judeu.” — “O Anticristo”)
O caso de Woody Allen é diferente. Ousaria dizer, até mesmo o oposto. Heidegger foi nazista por um tempo (e nunca se desculpou por isso, algo pelo quê nunca foi perdoado), mas sua obra não é nazista. Woody é acusado de ter molestado sexualmente sua filha Dylan (agora Malone) quando esta tinha apenas 7 anos. Seria, portanto, um psicopata, um monstro, um insensível, etc. Sua obra tem tudo isso. Inclusive caras mais velhos que se envolvem com uma gatinha bem mais nova (embora não tão nova quanto 7 anos).
Dylan/Malone ressuscitou o assunto por duas vezes agora. Numa matéria da seriíssima publicação “Vanity Fair”, por meio da qual Mia, sua mãe adotiva (Woody é seu pai adotivo), confessa que “nunca terminou pra valer com Frank Sinatra” e que Ronan, o único “filho biológico” deles pode ser que seja de Sinatra. E no último sábado, numa carta aberta publicada no blog do colunista de assuntos acerca da ética (?), Nicholos Kristof.
Dylan começa perguntando que filme de Woody é nosso preferido, para, em seguida, fazer seu relato: Um dia, na casa de campo de Mia Farrow em Conneticut, Woody a chamou para uma espécie de sótão, onde pediu que deitasse de bruços e brincasse com o trenzinho do irmão, enquanto a tocava. Ela tinha 7 anos, contou para a mãe, que gravou um vídeo de seu testemunho na época. No final de sua carta aberta, ela cospe na cara dos atores que participaram dos filmes do pai recentemente, assim como de Diane Keaton.
Eu não acredito em Dylan. Por quê?
1 — Porque eu não quero acreditar. É importante revelar de cara uma obviedade. Não sou isento. Ninguém é. Quem acha que é está mentindo para si mesmo. Woody Allen é o filósofo mais brilhante que já existiu. É um gênio. Se me dissessem que Beethoven era pedófilo, ou Kafka, Einstein, etc, eu teria enorme dificuldade em aceitar. Nunca é demais lembrar, portanto, meu aforismo preferido, o que mando marcar com ferro quente no lombo de meus alunos na PUC: “O intelecto humano, quando assente em uma convicção (ou por já bem aceita e acreditada ou porque o agrada), tudo arrasta para seu apoio e acordo. E ainda que em maior número, não observa a força das instâncias contrárias, despreza-as, ou, recorrendo a distinções, põe-nas de parte e rejeita, não sem grande e pernicioso prejuízo.” (Francis Bacon, Aforismo XLVI do “Novum Organum”)
2 — Por causa do artigo de Robert B. Weide, autor do recente “Woody Allen: A Documentary” (por sinal, fraquinho, apesar de bem intencionado). Weide elenca algumas peças que não se encaixam no quebra-cabeça:
A — O vídeo feito por Mia com o testemunho de Dylan foi editado ao longo de alguns dias. A babá viu. Essa mesma babá pediu demissão por discordar do modus operandi de Mia e refutar a tese de que Dylan ficou sem monitoramento de babás no dia da alegada ocorrência.
B — A junta médica da Universidade de Yale não encontrou na menina sinais de ter sido molestada.
C — O fato alegado teria ocorrido quando o casal já tinha se separado (Mia já tinha descoberto o caso com Soon Yi há algum tempo) e Woody estava fazendo uma visita às crianças na casa da mãe. Os dois já estavam brigando na Justiça. Weide e eu achamos altamente improvável que Woody fosse estúpido para ter um timing tão mal escolhido.
D — Os defensores de Mia costumam colocá-la num pedestal de santidade e coitadidade. Entretanto ela própria não teve uma vida “moralmente exemplar”. Teve um caso com Andre Previn quando este ainda era casado com Dory Previn, que caiu em grave depressão, e chegou a escrever uma música intitulada “Beware of Young Girls” (Mia tinha 24 anos quando lhe tomou o marido, de 40). E em outubro passado não hesitou em jogar merda no ventilador ao dizer pra “Vanity Fair” que era possível que Ronan fosse filho de Sinatra, e não de Woody. Barbara, a viúva de Blue Eyes, ainda viva, foi em quem a merda caiu em cheio. Weide e eu ponderamos: ou é uma brincadeira de muitíssimo mau gosto, ou ela é bem danadinha.
E — A carta de Dylan parece ter sido motivada pela homenagem que Woody recebeu dos Golden Globe Awards pela carreira (a qual, claro, ele não foi receber). Sem falar nas indicações ao Oscar para “Blue Jasmine”, o ‘Bonde chamado desejo’ de Woody. Aparentemente, mãe e filha ficaram profundamente irritadas com o fato de todo mundo ter “perdoado” o crápula a ponto de continuar a lhe conferir prêmios. Acontece que Robert Weide é quem foi o responsável pela montagem dessa homenagem, e pediu permissão de Mia para incluir imagens dela. E ela deu. Como é? Peraí, não foi ela quem tuitou coisas do tipo: “Uma mulher relatou publicamente ter sido molestada por Woody Allen. O prêmio do Golden Globe demonstra desprezo por ela e todas as vítimas de abuso”. Hein? Uma pessoa que dá permissão para uso de sua imagem sabendo do que se tratava e depois diz isso é uma pessoa profundamente perturbada.
F — Quanto a premiar um pedófilo, Weide lembra que Mia, amiga de Roman Polanski, nada disse quando este ganhou o Oscar por “O Pianista”, em 2002. O caso de Polanski é bem diferente, dirão. E é mesmo. Até porque ele admitiu que de fato teve relação sexual com uma menina de 13 anos. E esta não era sua filha adotiva. Mas, se for pra generalizar como ela fez em seu Twitter, Polanski encaixa na categoria de “pedófilos que recebem prêmios por seus filmes”.
Minha tese é que Mia Farrow é uma pessoa profundamente perturbada (bioquímica e neuropatologicamente mesmo) e machucada, que não hesita em trazer os outros para dentro de sua espiral egocentrada. Dory Previn, Barbara Sinatra, Ronan, Dylan, Soon-Yi, Woody são todos moscas presas em sua teia psicótica. Posso estar errado? Posso. Mas acho que não.