Há 50 anos nascia o século 21 com os Beatles tocando no telhado

O gato subiu no telhado. Lá se foram cinquenta anos. E uma revolução transcorreu debaixo de nosso nariz. Dessa vez, o gato do prenúncio eram Os Beatles. Que fizeram o último show no topo de um prédio londrino, às margens do emblemático Rio Tâmisa. Não era pra ser o último. Mas foi. Ninguém sobe ao telhado impunemente. Ainda mais Os Beatles. Eles não fariam o último show impunemente. Sobretudo em cima do telhado.

Desde aquele sintomático Apple Rooftop Concert, de 30 de janeiro de 1969, o mundo entrou num torvelinho sem precedentes. Os Beatles não promoveram o torvelinho. Eram o sintoma do próprio torvelinho que prenunciavam. De sobra, compuseram a trilha sonora para os tempos que vinham vindo. Um vizinho ainda chamou a polícia para tentar interromper o concerto-parto. Em vão. O século 21 nascia ali. A céu aberto, sobre os telhados do mundo.

Desde então entramos num paraíso de dervixes rodopiantes. Um mundo de desassossego, que oscila entre a redenção e a queda. Entre a euforia e a frustração. Entre a civilização e a barbárie. Entre a luz da tecnologia e a obscuridade mental. Entre a produtividade recorde e a destruição hecatômbica. Entre a neve acachapante e o sol em labaredas. Um mundo entre “sorria você está sendo filmado” e “salve-se quem puder”.

Não falo apenas por mim, mas por minha geração. No livro-poema “Pela Alvorada dos Nirvanas”, narro a experiência da chegada do torvelinho:

aquele dia divisor
em que um antenado colega
a uns poucos nos convidara
para estar no seu muquifo
numa noite de agosto
de fumaça e nuvem de aleluias
de sexta para sábado
e ouvir um disco novo
de um troço novo
que ele chamou de rock’n’roll

o ingresso eram duas pilhas
Rai-o-vac as Amarelinhas

é que a vitrola bebia pra caramba
mas a coca-cola e a cachaça
ficavam por conta
do anfitrião

logo ao ver a capa
do propalado Long Play
tive tremor de epifania

aquela imagem mítica
Os Cabeludos de Liverpool
num rito de augúrio
fila indiana
enlevo de possuídos

no miolo de uma aura messiânica
palmilhando uma faixa de pedestres
na Abbey Road
em pleno coração londrino
(e ali atravessassem mundos
e (cr)uzassem (h)eras)

ou como quem simplesmente esvoasse
pela alvorada
dos nirvanas

o disco girou
em sua pickup de massa verde
talvez de verde-esperança
verde-turbulência talvez
do mesmo verde ambiental
que aos tornados antecede

e a gente arranhando
aquele Inglês ginasiano
mais de supor que de entender
em deslumbre total
sob os vapores da caninha
ligados naquele iê-iê-iê manhoso
nos eletrificando como quem segura
em fio desencapado
de bruta voltagem

here comes de sun
here comes de sun and I say
it’s alright

foi assim como tomar na veia
uma overdose de revolucionina
uma estricnina
uma constipação medonha
um estupor dos miolos
uma incorporação de mil demônios

falando agora tudo parece tão banal
mas o instante representou
a travessia do limiar
de um mundo em que
uma rosa é uma rosa é uma rosa
e tudo estava certo
tudo estava no lugar

adentramos a cova do Ciclope de Homero
cujo olho é imune a chuço incandescente
onde uma chama
é uma chama
é uma chama
e tudo ferve e tudo queima
e nada é mais do que aparência
onde o centro está na superfície
e são móveis todas as referências
quando o que é
já era
e o que vai ser
já foi
ou nunca será.

Faz cinquenta anos que Os Beatles subiram no telhado e a vida das pessoas, por mais pacatas que sejam, nunca mais foi a mesma. Os Beatles não subiram no telhado impunemente.

Edival Lourenço

Escritor.