Sem dinheiro e com muitas preocupações. Assim pegamos a estrada. Passaríamos o final de semana em Tiradentes para energizar janeiro, que já na primeira quinzena parecia ter girado uma centena de dias no calendário. Assim que chegamos fomos almoçar, e antes do fim da primeira cerveja uma cena marrom tomou a televisão do restaurante. Ficamos de pé. Ver para crer. Outra vez. O rompimento de mais uma barragem de rejeitos de mineração nos lançava na lama da desolação. Eu, que habitava meus problemas particulares de modo tão intenso, quase havia me esquecido de como as irresponsáveis e gananciosas mineradoras — e os políticos eleitos por nós — negligenciam nossas vidas.
Nosso grupo de viagem, Renata e eu (jornalistas), Eugênio (meu pai, historiador), meu marido Fabrício (biólogo) e a pequena Liz, filhota de um ano, todos nascidos e criados em meio às montanhas, testemunhávamos, de pontos de vista aguçados por nossas profissões, outro crime com precedentes, cometido pelas exploradoras do minério de ferro. Embora não tivéssemos nenhuma responsabilidade direta, o senso de cidadania unia nosso estarrecimento e latejava mudo em cada um de nós. E a mesma pergunta silenciosa urrava: até quando assistiríamos à mineração tendo aval no Legislativo, Executivo e na sociedade civil para matar pessoas e destruir o meio ambiente, impunemente e por dinheiro?
Sim, são assassinos. Acidente é algo improvável e imprevisível. Estamos há 17 anos registrando rompimentos bianuais de barragens em Minas Gerais, com causas específicas ou variadas, julgados em processos que nada concluem. Não é preciso ser especialista para saber que são mais do mesmo. Estão esburacando nossa terra para sustentar a industrialização de outras nações. Possuem licença para explorar sem medida tudo o que está aí e autorização legal para monitorarem sua segurança. Ineficientemente, dadas as mortes e estragos frequentes. Mas a justiça nunca é feita, e os desastres são tratados como isolados e incontroláveis.
Balela. Para mim, todo aquele que contribui para a manutenção desse esquema carrega consigo o cheiro do sangue. E é responsável pelo desequilíbrio ambiental do País, comprometendo, inclusive, o futuro de gerações. Não entendo como dormem, sabendo que milhares de famílias, histórias e ecossistemas foram dizimados pela busca insana do lucro. Fico transtornada, mas nem por isso me perco em minha passionalidade. Estudos corroboram minhas reflexões.
Para Bruno Milanez, doutor em Política Ambiental, Mariana anunciou Brumadinho em 2015. Isso só para falar dos últimos eventos. “O projeto Mar de Lama Nunca Mais já havia feito recomendações para o fim do automonitoramento das barragens pelas mineradoras. E como nenhuma providência havia sido tomada, a gente já discutia quando um novo rompimento aconteceria, porque era certeza que ele viria”. O especialista explica ainda, de forma didática, que as mineradoras ‘descuidam’ das medidas de segurança quando há baixa no preço do produto, e não associam as fragilidades de monitoramento e de licenciamento ambiental aos rompimentos. Para ele, existe uma “visão de mundo, no setor, que barragens não se rompem. E isso fez com que a Vale, por exemplo, construísse um restaurante logo embaixo de uma delas”.
Olha, Bruno, peço licença para atravessar seu pensamento com minha revolta construtiva e indago: uma empresa siderúrgica de porte internacional, com ações valorizadas em todo o mundo, tem como precaução a cultura da fé, porque a fé não costuma falhar? Honestamente, se isso é fato, eu me preocupo ainda mais. Porém, acredito muito mais no desrespeito generalizado aliado à certeza da impunidade garantida pelo ciclo corrompido, estruturado no Estado desde a época colonial. A equação é simples: mineradoras financiam políticos. Esses, em troca, abrem as pernas na concessão de licenças e leis de fiscalização especialmente frágeis. Chefes da mineração ocupam postos em entidades reguladoras da atividade e seguem defendendo os interesses do capital. Os moradores e trabalhadores são ignorados, até mesmo nas discussões sobre as ações de impacto em suas comunidades. São iludidos pela esperança de crescimento local e se apegam à máxima de que a vida vai melhorar, e apenas executam as ordens nas minas de metais e de votos. Sem saber, são o ouro mineiro contemporâneo, pois, através da suposta democracia, viabilizam a manutenção do sistema, independente do partido que vencer a eleição. É um mecanismo de doutrinação mentiroso, que só traz boa vida àqueles que estão no topo da montanha e que não morrem em desmoronamentos. É lamentável, e talvez, incorrigível.
Hoje estamos aflitos por Brumadinho. Os olhos do mundo voltados para mais uma tragédia em nossas Minas Gerais. É tudo tão desavergonhadamente esfregado em nossas caras que, às vezes, temos dificuldade de enxergar e agir. Sinto necessidade e obrigação de reagir. Escrever, denunciar, protestar. E, ao tentar fazer isso, como cidadã, jornalista e ativista, vislumbro um cenário de pouca mudança. A imprensa está presa ao seu papel de vender o drama sem comprometer-se demais. Grandes veículos são financiados por mineradores e seus parceiros. Municípios dependem da arrecadação da atividade para sobreviver. O Executivo e Legislativo, locais e nacionais, se rebaixaram tanto que já perderam, com as calças, a moral. Nativos precisam de comida e trabalho. Até ONGS, pesquisadores e artistas já dependeram em algum momento do dinheiro sujo de lama, em forma de patrocínios. Essas empresas da morte, sob o pretexto da prosperidade, criaram um mecanismo de exploração tão sofisticadamente ramificado que terminaram infiltrados em nossa (sobre)vivência. E tiram, pouco a pouco, nosso bem mais precioso: a força desbravadora e independente do mineiro, agora preso no minério. Aquilo que já foi nosso incentivo libertário hoje é o que nos torna cada vez mais impotentes. Como podemos nos movimentar e quebrar o ciclo? A triste verdade é que não sabemos mais como existir fora do esquema desse mercado.
O problema é que ainda há muita lama para rolar. E quem pagará o preço será sempre a parte frágil. É por isso que aquele silêncio incômodo, presente em nosso grupo de viagem, ainda dorme e acorda com a gente.