Caso o icônico escritor russo Fiódor Dostoiévski tivesse se tornado um asceta budista já em sua juventude, teria passado em branco na história de seu país e na galeria dos consagrados da história literária mundial. Talvez nem tivesse se tornado um escritor, mas sim um religioso fundamentalista, com sua ardente fé fazendo sucumbir e soterrando sua poderosa inteligência criadora.
Talvez nem sua geração tivesse notícia da sua existência. No entanto, sendo um homem de gênio “atormentado, ambicioso, desditoso e pesado”, no dizer de Lev Tolstói — outro gênio literário —, tornou-se um profeta do niilismo cristão desesperado, e um dos maiores, senão o maior, dos escritores de língua russa.
A julgar pela frase acima, não era das mais lisonjeiras a opinião que o autor de “A Morte de Ivan Ilitch” tinha do autor de “Crime e Castigo”. Ele chega quase a afirmar que este último seria leitura atormentada para gente igualmente atormentada e imersa em problemas financeiros, familiares e conflitos existenciais que desafiam a psicanálise e as demais pajelanças pseudocientíficas da área psi.
Dele dizia o também atormentado, aclamado e renomado morador da vasta propriedade Iasnaia Poliana — que, imerso em crise mística, doaria aos servos da sua famosa gleba: “Dostoiévski deveria ter se familiarizado com as doutrinas de Buda e Confúcio. Elas lhe devolveriam a tranquilidade. Era um homem de sangue agitado. Tinha alguma coisa de judaísmo no sangue, era desconfiado sem motivo. É estranho que seja tão lido. Tudo nele é penoso e inútil. Todos aqueles idiotas, todos aqueles moços, Raskólnikov e os outros, não são reais; tudo é muito mais singelo na vida”.
Note-se a lancetada de antissemitismo, por parte de Tolstói, ao analisar o caráter do autor de “Os Irmãos Karamazov”. Tolstói atribui a ele uma desconfiança atávica, que vê como traço dos judeus em geral. Impossível não ver neste texto uma inexplicável, sombria má vontade ou incapacidade de compreender, ou ao menos tentar minimamente entender os conflitos psicológicos de grande densidade, verdadeiras e profundas imersões nos recorrentes dramas dos humanos de todos os países e tempos.
Quem atentar para as crises místicas de cristianismo em que mergulharam os dois grandes autores (sendo que Tolstói chegou a enlouquecer, literalmente, na fase final da sua vida, deixando sua propriedade como um mendigo ou pária errante, caminhando país adentro, enfrentando noites de tenebrosas tempestades de inverno). Como um poderia posicionar-se tão distante do outro, tão cáustico e tão crítico, sendo que foram navegantes das mesmas inquietações e turbulências filosóficas e religiosas? Qualquer semelhança com inveja literária pura e simples não é mera coincidência.
Sobre a carga de maldade predominante na vida e obra de gênios da literatura com seus pares, assinala o crítico Eduardo Frieiro, em seu livro “A Ilusão Literária”: “Olhemos para o passado. Petrarca não estimava Dante. Nicolas Boileau tinha La Fontaine em pequena conta. Lope de Vega detestava Cervantes e sua obra”.
Na mesma obra, o crítico literário mineiro segue em seu raciocínio: “A glória de Marcel Proust é recente e póstuma. Antes de sua morte, Marcel Proust permaneceu quase ignorado, não havendo editor que lhe quisesse as obras, desconhecidas e recusadas pelos editores mais seletos, como o da “Nouvelle Revue Française”. E note-se que nesta prestigiosa revista literária foi o crítico francês mais clarividente do momento, André Gide, quem desconheceu o merecimento do romancista de ‘La Recherche Du Temps Perdu’, tendo se penitenciado posteriormente”.
Sabe-se, por exemplo, — assinala Eduardo Frieiro — que Voltaire zombou de Homero e da Bíblia, que Mérimée achava medíocre Baudelaire, que este não estimava Molière, nem Renan, que Goethe não compreendeu Beethoven, que Tolstói não suportava Shakespeare, nem Hugo, nem os grandes clássicos latinos.
Tais erros de perspectiva, comuníssimos, o que provam? A fragilidade dos juízos estéticos ou manifestações de inveja literária pura e simples? No Brasil também abundam exemplos de equívocos e esnobações de notáveis da literatura com relação a contemporâneos seus.
É o caso de Graciliano Ramos desclassificando “Sagarana”, de Guimarães Rosa, em concurso literário, e atribuindo o prêmio a um romance medíocre e sem importância alguma — o “Maria Perigosa”, do então importante jornalista Luís Jardim. Não há registro de que o seco e árido (em temperamento e estilo) Graciliano Ramos tenha se penitenciado de seu erro de avaliação crítica da obra de Rosa, que em pouco tempo conheceria, ainda em vida, uma consagração e um reconhecimento internacional até maiores do que os dele próprio.
A história da literatura não é só a crônica das amizades, das admirações e da troca de elogios, sinceros ou fingidos, que dão volume e visibilidade às carreiras literárias. Um rápido olhar sobre as biografias literárias de escritores célebres nos mostra que não são incomuns as farpas da inveja e da disputa de prestígio, as hostilidades furibundas, as rasteiras e voadoras — puramente verbais, é verdade, porém devastadoras e dotadas de cargas de maldade e perversidade longe de serem cristãs. Muitas opiniões de gênios sobre outros, que também o eram, foram lançadas com o evidente intuito de desmerecer, desqualificar, desancar, botar abaixo, tirar do páreo.
Alguns exemplos: “Charlotte Brontë enviou versos a Southey, pedindo-lhe opinião sobre eles. Southey aconselha a futura autora de Jane Eyre a fazer doces e bolinhos”. “Balzac não valia George Sand como romancista e estava abaixo de Bernard como contista.” Sotero dos Reis, que não era tolo, comparou desproporcionalmente a La Rochefoucauld o nosso medíocre Marquês de Maricá. “Sílvio Romero subtraiu valor à obra de Machado de Assis, o maior escritor brasileiro de seu tempo, para dá-la a seu mestre Tobias Barreto.” É bom lembrar que este último passou em branco pela literatura, produzindo muito, porém só mediocridades indignas de nota.
Trazendo o papo do terreno nacional e mais antigo para o, digamos, chão provinciano: foi dito por José J. Veiga que mesmo sendo da mesma idade (e cidade) que Bernardo Élis, eles não tiveram convivência alguma na infância e juventude. O fato foi contado pelo consagrado autor de “A Hora dos Ruminantes”, ao ser perguntado sobre os motivos que teriam levado pessoas da mesma idade a não terem cruzado sua infância e juventude nas ruas, grotas, becos, cachoeiras e riachos do pequeno e calmo burgo goiano: “É que ele morava na rua central da cidade, e eu era morador da baixada”.
Nem depois que, jovens, mudaram-se para Goiânia, a nova capital do Estado, tiveram vida literária em comum, ou qualquer tipo ou nível de convivência. Bernardo Élis foi trabalhar na Prefeitura de Goiânia. Sabendo ser ele um escritor noviço, o então Prefeito Venerando de Freitas Borges cuidou de criar uma Bolsa de Publicações, a hoje importante Bolsa Hugo de Carvalho Ramos. Vencedor inevitável (certamente por mérito), Bernardo Élis fez sua estreia com o livro de contos “Caminhos e Descaminhos”.
Quanto a José J. Veiga, até então não tinha adotado este nome; o que lhe foi sugerido por Guimarães Rosa excluía o Jacinto. Veio também de Rosa a sugestão para livros de Veiga: que tivessem quatro palavras. “A Máquina Extraviada” passou a ser “A Estranha Máquina Extraviada”. Rosa era místico, dado a superstições. Dizem que andava pelas ruas com um terço, rezando, como testemunharam colegas seus do Itamaraty. Um deles era o goiano Isócrates de Oliveira — que em papos no café, a pedido dele, inundava Rosa de explicações sobre estranhezas e singularidades de indivíduos da fauna e flora dos ermos e gerais dos goyazes.
Não tendo conseguido em Goiânia emprego nem de vendedor de tecidos, nas Casas Buri (fato a mim revelado por ele, Veiga, em entrevista) mandou-se, de mala e cuia, para o Rio de Janeiro, a então capital federal e cultural do país, de lá despachando-se para Londres, onde trabalhou na famosa emissora de rádio BBC.
Retornando ao Brasil, foi trabalhar na Fundação Getúlio Vargas, onde nas horas vagas (que eram quase todas) deu início à sua vitoriosa carreira literária, iniciada com o livro de contos “Os Cavalinhos de Platiplanto”. Na Fundação Getúlio Vargas, Veiga trabalhou com Benedicto Silva, renomado intelectual, que o colocou sob sua proteção. Arranjou-lhe uma sala só dele, dando-lhe ordem expressa de empreender esforços somente na produção de seus livros.
José J. Veiga acabou se tornando um escritor mais lido, com maior fortuna crítica e mais bem traduzido do que Bernardo Élis, não obstante este ter chegado à glória literária de ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Veiga, em entrevista a mim concedida, para a série Vultos Goianos, disse não desejar a imortalidade literária por esta via, por achar que ficaria horrível envergando o custoso e brilhoso fardão acadêmico, de uso obrigatório, nas solenidades de posse.
Em tempo: em convescotes, colóquios e encontros de escritores e artistas registra-se indisfarçável dificuldade nos integrantes das animadas rodas em tirarem seus semblantes do recinto, mesmo precisando fazê-lo. O motivo é simples, mas inquietante: temem ser alvo da malhação geral e irrestrita, por parte de seus colegas oficiantes do hospital das letras.
Daí ser comum a combinação tácita de saírem todos juntos, ao mesmo tempo, em uma espécie de debandada geral, em que todos se salvam da falação nada cristã, e nem um pouco civilizada.